22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi (parte 10)
Luís Cláudio Cunha
A versão de Fiúza
“Nós [do CODI] cedemos umas dependências na Barão de Mesquita ao CIE para eles fazerem uma espécie de ‘cela preta’ que aprenderam nos Estados Unidos e na Inglaterra. Mas o CIE tinha autonomia para trabalhar em qualquer lugar do Brasil. Eles tinham aparelhos especiais, não oficiais, fora das unidades do I Exército, para interrogatórios (…). Como a casa de Petrópolis”.
No seu relato, Fiúza descreve o procedimento inicial no DOI na chegada do preso, com as fotos, impressões digitais e primeiras perguntas de praxe sobre nome, filiação, origem. O general descreve uma repartição que, acima do do terror e do medo, tinha obsessão literal pela higiene, pela limpeza.
Fala Fiúza:
“[…] Eles não podiam ficar com a roupa que estavam, porque podiam esconder qualquer coisa. Então, eram mandados se despir, e era fornecida uma roupa especial, uma espécie de macaquinho. Para as moças, também era dado imediatamente um modess, porque a primeira coisa que acontece com a mulher quando ela é submetida a essa angústia da prisão é ficar menstruada. E fica escorrendo sangue pela perna abaixo, uma coisa muito desagradável. Em seguida, tomavam um banho, trocavam a roupa. O [Sylvio] Frota fazia questão de que cada cela tivesse roupas de cama limpas [….]”
“[…] Normalmente, o camarada que ‘cai’, ou seja, foi preso, entra num estado de pânico e de perturbação muito forte. Só aqueles mais estruturados, mais seguros é que mantêm o domínio de si mesmos. O restante, vamos dizer 90%, a primeira coisa que faz é ter uma disenteria brutal, de escorrer pelas pernas abaixo. Qualquer homem que já leu algum relato de combate sabe que, quando o sujeito é submetido a um bombardeio, suja as calças”.
“Porque os esfíncteres não seguram os excrementos quando se está submetido a um medo muito grande. Então o medo é realmente um fator muito favorável ao interrogatório quando este é feito logo que o camarada ‘caiu’ […][…] o medo é um grande auxiliar no interrogatório […] tirando a sua roupa, fica-se muito agoniado, num estado de depressão muito grande. E esse estado de desespero é favorável ao interrogador”.
“O Frota não concordava muito com isso, mas usava-se. É uma técnica praticamente generalizada. E também por uma questão de limpeza, porque o prisioneiro se suja, suja o chão… É impressionante. Não se pode parar um interrogatório e convidar: “Vamos mudar a roupa?”. E o cheiro fica terrível. Interrogando o preso despido, é mais fácil qualquer limpeza […]”
Na ‘Casa da Morte’, mais do que no higiênico DOI de Fiúza, a limpeza extrema devia ser proporcional ao terror, ainda maior. Lá desapareceram para sempre ao menos 14 militantes da esquerda, segundo a CNV.
É o inferno onde viveu durante terríveis 96 dias a única sobrevivente do lugar, Inês Etienne Romeu, dirigente do mesmo grupo guerrilheiro de Dilma Rousseff, a VAR-Palmares.
Acusada de participar do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher em 1970, foi presa no ano seguinte e condenada à prisão perpétua, pena depois reduzida a oito anos. Nos três meses de suplício na casa, entre 8 de maio e 11 de agosto de 1971, Inês Etienne foi torturada, estuprada, injetada com pentotal sódico (o chamado ‘soro da verdade’) e, depois de cada uma de suas duas tentativas de suicídio, medicada para recuperar as forças e receber novas sevícias.
Dois de seus torturadores mais graduados na casa, apesar dos codinomes, foram identificados pela CNV. O Dr. Roberto era o major Freddie Perdigão, o Dr. Teixeira era o major Rubens Paim Sampaio, hoje tenente-coronel na reserva.
As dores de Etienne:
“[…] Fui conduzida para uma casa […] em Petrópolis […] O Dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça […] Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. A certa altura, o Dr. Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma; estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já havia sido condenada à morte e ele, Dr. Roberto, decidira que ela seria a mais lenta e cruel possível, tal o ódio que sentia pelos ‘terroristas’
[…] Alguns dias depois […] apareceu o Dr. Teixeira, oferecendo-me uma saída ‘humana’: o suicídio […] Aceitei e pedi um revólver, pois já não suportava mais. Entretanto, o Dr. Teixeira queria que o meu suicídio fosse público. Propôs então que eu me atirasse embaixo de um ônibus, como eu já fizera […] No momento em que deveria me atirar sob as rodas de um ônibus, eu me agachei e segurei as pernas de um deles, chorando e gritando.
[…] Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, ‘telefones’, palmatórias. Espancaram-me no rosto até eu ficar desfigurada. […] O Márcio invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e verificar se o Camarão havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo Márcio obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo Camarão e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos mais grosseiros e obscenidades […]“.
Outros craques da repressão no time barra-brava daquela casa infernal, que o Exército nem lembrou de citar em sua sindicância como ‘desvio de finalidade’, eram o tenente da reserva Antônio Fernando Hughes de Carvalho, codinome Alan, e o então capitão Paulo Malhães, o Dr. Pablo.
Em fevereiro passado, o coronel da reserva Armando Avólio Filho contou à CNV ter visto Hughes pulando sobre o corpo de um preso torturado na carceragem do DOI da Barão de Mesquita, em janeiro de 1971.O preso era o ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido até hoje. O tenente morreu em 2005.
Um mês depois de Avólio contar sobre Alan, foi a vez do Dr. Pablo falar. Em março passado, num estarrecedor depoimento à CNV reproduzido até no Jornal Nacional da Rede Globo, e que deve ter passado desapercebido do general sindicante, Malhães reconheceu ter organizado a casa clandestina de Petrópolis em nome do DOI-CODI e assumiu uma das finalidades – sem desvios – daquele tétrico endereço de um Exército envergonhado que não ousa dizer seu funéreo apelido.
Falou Malhães:
“Naquela época não existia DNA, concorda comigo? Então, quando o senhor vai se desfazer de um corpo, quais são as partes que, se acharem o corpo, podem determinar quem é a pessoa? Arcada dentária e digitais, só. Quebravam os dentes e cortavam os dedos. As mãos, não. E aí, se desfazia do corpo”.
Registros que o Exército diz não ter sobre o DOI-CODI no Rio e sua ‘Casa da Morte’ em Petrópolis: Os torturadores: Malhães, Hughes, Paim, Perdigão… … e os torturados: Inês Etienne e Rubens Paiva
O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.
Fonte: Jornal Já