22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi (parte 11)
Luís Cláudio Cunha
A morte do Robot
Na manhã de 25 de abril, exatamente um mês após ter chocado o país ao revelar na CNV como se torturava, matava, retalhava e ocultava cadáveres de presos políticos na ditadura, Malhães foi encontrado morto em seu sítio em Marapicu, no interior de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense.
Sucumbiu por infarto, segundo a polícia, às fortes emoções da invasão de sua casa por três ladrões que buscavam as armas antigas que colecionava.
Apesar da forte convicção policial em simples latrocínio, o comportamento dos assaltantes mostrava coisas esquisitas. Ficaram mais de seis horas na casa, com o coronel morto e a mulher amarrada, revistando tudo, especialmente o escritório, deixando filmes e documentos de Malhães espalhados pelo chão.
Um deles falava com frequência ao celular, talvez recebendo instruções. Ao sair, levaram três pastas de documentos e o disco rígido de um dos dois computadores do coronel, itens estranhos para uma simples rapina.
“É um fato grave, porque entra em confronto com a tese de latrocínio”, anotou o advogado Wadih Damous, então presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro.
Um endereço ainda mais letal do Exército ficava no Pará. Apesar do nome, a ‘Casa Azul’ foi o inferno final para 24 pessoas na cidade de Marabá, 500 km ao sul de Belém. Funcionou como o QG da repressão à guerrilha do Araguaia, nos anos 1972-73.
Era a sede do antigo DNER, que ocupava uma grande área arborizada imune a curiosos no bairro Amapá, às margens do km 01 da rodovia Transamazônica.
A coordenação cabia ao coronel do CIE Léo Frederico Cinelli, em linha direta com o temido chefe do CIE em Brasília, o casmurro general Milton Tavares, o Miltinho, pináculo da linha dura no Exército.
Cinelli era chefe do serviço de inteligência do I Exército em 30 de abril de 1981, quando recebeu às 23h45 o relato do fracasso da ‘Missão 115 – Operação Centro’, nome em código do atentado do Riocentro, transmitido pelo próprio comandante do DOI-CODI fluminense, o coronel Júlio Miguel Molinas Dias.
As anotações nervosas daquela noite de quinta-feira no diário do coronel Molinas, assassinado em um assalto em 2012 em Porto Alegre, dão uma ideia da insônia que tomou conta do DOI-CODI, ferido mortalmente pela explosão.
Trechos do diário do coronel Molinas, divulgado pelo jornal Zero Hora:
Quinta-feira, 30 de abril de 1981
Intervalo do jogo do Grêmio x São Paulo, telefonema do agente Reis [codinome]. Disse que um cabo PM telefonara avisando que haveria um acidente com explosivo com uma vítima. Deu o nome quente Dr. Marcos…[codinome do capitão Wilson Machado, chefe da Seção de Operações do DOI-Codi, ferido na explosão].
[…] Por volta das 22h30min, cheguei ao órgão… dirigi-me à vaga n.1 do comando. […] O Dr. Wilson [codinome], que estava na operação, chegou logo a seguir. Reis […] avisou que recebera telefonema […] dizendo que um sargento estava no local, irreconhecível.
23h30min — Na Globo – estouraram duas bombas no estacionamento, destruindo dois carros e uma moto. No segundo carro não houve vítimas. 23h30min — Dr. Araújo (codinome) telefona para saber o que houve. […]
23h30min — Hospital Miguel Couto… [Capitão] Tá sendo operado, vísceras do lado de fora. Estado grave.
23h35min — Uma bomba na casa de força [central de energia do Riocentro] e uma no carro.
23h50min — O Robot [sargento Rosário] está morto. Tem uma granada que estava no carro e botaram no chão.
Sexta-feira, 1º de maio de 1981
0h40min — Coronel Cinelli — Falamos sobre a ida da perícia da PE [Polícia do Exército] à paisana e a retirada do corpo.
1h01min — Tenente-coronel Portella liga ao HCE [Hospital Central do Exército] para receber o corpo do Robot [sargento Rosário].
1h05min — [Capitão]Está sendo operado, dilaceração nas vísceras.
4h24min — Um Chevette aberto cinza metálico com bagageiro placas RT-1719 estava ao lado do carro Puma, com um emblema do 1º BPE.
6h05min — Justifico telefonema dizendo que está na cirurgia, Dr. Marcos (codinome do capitão ferido), ortopédica nos braços.
Domingo, 3 de maio de 1981
8h25min — Telefonema do coronel Prado, dizendo que o JB [Jornal do Brasil] tem reportagem em que um médico diz que o capitão estaria em condições de falar. O assunto é tratado com o coronel Cinelli.
Na ‘Casa Azul’, dez anos antes do Riocentro, Cinelli conviveu com algumas das estrelas mais notórias da repressão. Como chefe do Centro de Informações e Triagem (CIT), cabia a ele enviar as informações que o general Miltinho, em Brasília, repassava aos seus chefes diretos: o ministro Orlando Geisel e, no topo, o presidente Médici.
Abaixo dele, Cinelli teve dois chefes do CIE no Estado-Maior das FFAA no Araguaia: em 1973 o tenente-coronel Wilson Romão (o último militar a dirigir a Polícia Federal, já no Governo Itamar Franco) e, em 1974, o tenente-coronel Flávio Demarco (que em 1975, por ordem de Geisel e Figueiredo, representou o Brasil na criação da Operação Condor, em Santiago do Chile).
Completavam o dream-team da Casa os majores Sebastião Curió, Lício Maciel e José Teixeira Brant. Eles garantiam o serviço. Dos 24 mortos ali, 22 eram militantes do PCdoB, que organizou o foco guerrilheiro, e os outros dois eram camponeses que aderiram à guerrilha, entre 1972 e 1973.
“Ninguém sobreviveu à Casa Azul”, lembrou a historiadora Starling.
O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.
Fonte: Jornal Já