22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi (parte 14)
Luís Cláudio Cunha
O coronel encabulado
Seria doloroso repetir, aqui, os nomes e circunstâncias dos nove casos de morte e 17 relatos de tortura em sete instalações das FFAA, zelosamente levantados pela CNV e solenemente ignorados na resposta dos comandantes militares.
Os chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica não confirmaram, não negaram, não comentaram, sequer se deram ao esforço de corrigir eventuais detalhes de cada caso de violência citado no relatório.
Os oficiais-generais das três Armas não se perguntaram nem por quem os sinos dobram, esquecidos que eles dobram justamente por elas, as Forças Armadas brasileiras, na expressão do poeta inglês John Donne (1572-1631), eternizada na obra de Ernest Hemingway.
“A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano”, escreveu Donne em ‘Meditações 17′. Assim basta citar entre os casos listados pela CNV uma única morte, a morte de um homem qualquer que diminui as Forças Armadas como parte e instituição de um Estado comprometido com a verdade, a justiça e a democracia.
Basta lembrar a morte de Chael Charles Schreier em 1969 na 1ª Companhia da Polícia do Exército da Vila Militar, no Rio de Janeiro — uma das sete instalações militares listadas pela CNV como palco de graves violações de direitos humanos —, para desqualificar o arremedo de sindicância apresentado ao país pelas Forças Armadas.
Chael, um estudante de medicina de 23 anos, gordo e alto, militante da VAR-Palmares da guerrilheira Dilma Rousseff, foi detido por agentes do DOPS e militares da PE em casa, no bairro de Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio, junto com dois companheiros de organização: Antonio Roberto Espinosa e Maria Auxiliadora Lara Barcelos, a Dora.
Ela foi a primeira a ser presa, logo ao abrir a porta do sobrado para os visitantes armados. No andar superior, Chael e Espinosa resistiram a tiros e só se entregaram quando a munição acabou.
Presos na noite de sexta-feira, 21 de novembro de 1969, passaram por uma sessão de pancadaria no DOPS até serem repassados à 1h30 da madrugada ao quartel da 1ª Companhia da PE da Vila Militar, na zona oeste da cidade, onde está a maior concentração de força terrestre da América Latina: 51 quartéis com uma guarnição de 60 mil homens, quase um terço do efetivo atual (222 mil homens) do Exército brasileiro.
A Companhia da PE era o endereço mais temido da vila, onde Chael sucumbiu em pouco tempo às torturas. Morreu por volta das 7h da manhã seguinte, atrapalhando o sábado da guarnição que, conforme apurou o Exército, não tem “qualquer registro de utilização (…) para fins diferentes do que lhes tenha sido atribuído” [sic].
A verdade, que o Exército não conseguiu localizar nos seus registros, pode ser melhor avaliada no cru relato de Dora perante a 2ª Auditoria de Marinha, cinco meses após a prisão.
As dores de Dora:
“[…[presa no dia 21 de novembro, …junto a Antônio Roberto e Chael; …em casa, na rua Aquidaban;(…) foram conduzidos ao DOPS; …Chael foi chamado para uma sala do lado, onde Chael foi espancado, ouvindo a declarante os seus gritos; (…) depois dessas duas horas, Antônio Roberto também foi chamado, …de dez horas da noite às quatro da manhã, Antônio Roberto e Chael ficaram apanhando,(…) nesta sala, foram tirando aos poucos sua roupa; (…) um policial, entre calões proferidos por outros, ficou à sua frente, como traduzindo manter relações de sexo com a declarante, ao tempo em que tocava seu corpo, que esta prática perdurou por duas horas;… o policial profanava os seus seios e usando uma tesoura, fazia como iniciar seccioná-los;
…sofreu bofetadas já quando à sala vieram cerca de quinze pessoas;…na sala contígua interpelavam a Chael e Antônio Roberto [sobre] como era a declarante, sob o prisma sexual; (…) pelas quatro horas da madrugada, Chael e Roberto saíram da sala onde se encontravam, visivelmente ensanguentados, inclusive no pênis, na orelha e ostentando corte na cabeça; (…) daí foram transferidos para a Polícia do Exército. (…) que nesta unidade do Exército, os três presos foram colocados numa sala, sem roupas;
…inicialmente chamaram Chael e fizeram-no beijar a declarante toda e em seguida chamaram Antônio Roberto para repetir esta prática, empurrando a cabeça dele sobre os seios da declarante; (…) depois um indivíduo lhe segurou os seios apertando-os, enquanto outros torturadores a machucavam; (…) em seguida Antônio Roberto e Chael foram levados para a sala ao lado onde estava a declarante, que ouvia gritos de Chael dizendo não saber de nada; (…) tais torturas duraram até sete horas da manhã, quando Chael parou de gritar, ficando caído no chão(…)”
[Apelação nº 40.278,págs. 60 e 61, do STM, processo nº 0260/96 da
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos]
A morte de Chael foi comunicada naquela manhã ao coronel Carlos Luiz Helvécio da Silveira Leite, que fazia o plantão no gabinete do ministro do Exército, Orlando Geisel. O coronel perguntou o nome do oficial responsável pelo interrogatório: era o então major de Cavalaria Ary Pereira de Carvalho, figura ilustre das listas de torturadores.
Helvécio mandou à Vila Militar um tenente-coronel do CIE, Murilo Fernando Alexander, com ordens de levar o corpo para o Hospital Central do Exército (HCE). Deu encrenca.
Talvez suspeitando de algum desvio de finalidade inconfessável, o diretor do HCE, general Galeno da Pena Franco, se negou a receber o cadáver: “Não concordaram em aceitá-lo como se tivesse entrado vivo”, contou Hélvécio em 1988 ao jornal O Estado de S.Paulo. Mas, o diretor do HCE reteve o corpo o tempo necessário para fazer a autópsia. Desviado depois para o Instituto Médico Legal (IML), o corpo despido revelou nas feridas o ímpeto das torturas sofridas. “Fiquei encabulado de ver o número de equimoses, as sevícias que o cadáver apresentava”, chegou a confessar o coronel Alexander, do CIE.
O Exército devia ter ficado ainda mais encabulado com as mentiras que contava em São Paulo aos aflitos pais de Chael, Ary e Emília Schreier. Quando saiu a primeira notícia da prisão de Chael, no domingo 23, ele já estava morto de véspera. Os pais viajaram ao Rio naquele dia, na esperança de reencontrar o filho vivo. P
elo telefone, em contato com um major conhecido da família, foram tranquilizados na segunda 24: “Certamente, seu filho deve estar bem e farei o possível para que possam vê-lo”, disse o militar. Mais serenos, os pais procuraram advogados e um apartamento para o que parecia ser uma longa espera. Na terça-feira 25, novas notícias animadoras:
O Globo informou que o trio estava preso na PE da Vila Militar, fato confirmado pelo major. Até que, às 15h30 daquele dia, veio o choque: a família foi informada que podia visitar o cadáver do filho no IML. Só na quinta-feira 27, quando o corpo havia sido sepultado na tarde de quarta-feira no Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo, é que a imprensa enfim publicou informações sobre a morte ocorrida no sábado.
Fonte: Jornal Já
O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.