22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi (parte 2)
No início de 1970, naquele lugar listado pela CNV, padeceu durante 22 dias de suplício uma estudante mineira de 22 anos, integrante dos quadros de comando do grupo guerrilheiro Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), onde era conhecida pelos codinomes de ‘Estela’ ou ‘Vanda’. Na ficha da polícia, ela era identificada como Dilma Vana Rousseff, ou Linhares, seu nome de casada.
Passadas quatro décadas, a guerrilheira, presa e martirizada ‘Estela’ tornou-se a presidente da República Dilma Rousseff. Foi investida assim, pela força da democracia, na condição de Comandante-Suprema das Forças Armadas. A torturada Dilma é, desde 2011, a chefe incontestável dos comandantes militares que hoje negam a tortura. Cria-se, assim, uma insuperável contradição ética e institucional entre a autoridade máxima do País e seus comandados de farda:
Quem está dizendo a verdade? A presidente da República ou os comandantes das FFAA?
Ou, dito de outra forma, quem está mentindo? Dilma ou os generais?
Al Capone e Aristóteles
Com a sutileza possível, a CNV evitou no seu relatório a pergunta direta que pressupunha a não-resposta militar de sempre: quem torturou?, quem matou?
Em vez disso, os comissários preferiram um atalho legal, buscando inspiração talvez no exemplo de investigação lateral que deu certo contra Al Capone (1899-1947), o maior gangster dos Estados Unidos que aos 30 anos, no auge da Lei Seca, faturava o equivalente hoje a US$ 1,3 bilhão anuais.
Dono de um império criminoso que controlava o jogo, corridas de cavalo, clubes noturnos, bordéis, cervejarias e destilarias clandestinas, Capone sobreviveu impune à lei, até tropeçar num esperto agente do Tesouro americano, Eliott Ness, que vasculhou deslizes no Imposto de Renda que levaram o chefão da Máfia de Chicago aos tribunais e, dali, a uma pena de 11 anos de prisão.
Como ‘Os Intocáveis’ de Ness, os comissários da CNV miraram a burocracia da ditadura, pedindo aos comandantes militares o “esclarecimento das circunstâncias administrativas que levaram ao desvirtuamento do fim público estabelecido para aquelas instalações militares”.
De forma elegante, a CNV admitia a generosa hipótese do ‘desvio de finalidade’ dos centros de tortura, abrindo a brecha legal para que os atuais comandantes, reconhecendo o ‘desvio’, mostrassem cabalmente que as Forças Armadas da democracia nada têm a ver ou a dever às Forças Armadas da ditadura.
Uma chance preciosa para mostrar que as FFAA de 2014 de Dilma Rousseff não guardam nenhum elo com as FFAA de 1970 do general Garrastazú Médici. Até o recruta mais inexperiente entenderia a educada exceção que os comissários cravaram no ofício enviado ao ministro da Defesa, Celso Amorim:
“Não se pode conceber que próprios públicos, afetados administrativamente às Forças Armadas, pudessem ter sido formalmente destinados à prática de atos tidos por ilegais, mesmo à luz da ordem jurídica vigente à época da ocorrência das graves violações de direitos humanos, objeto de investigação”, ressalvaram os comissários.
Os generais, que deixaram de ser recrutas há meio século, preferiram se fazer de desentendidos — e responderam, em um sincronizado exercício de ordem unida, que “não houve desvio”. Caíram assim na armadilha do silogismo de Aristóteles em que duas premissas verdadeiras levam a uma conclusão inescapável, terrível.
- Premissa maior:
A CNV prova que havia tortura e morte nos sete endereços militares apontados. - Premissa menor:
As FFAA respondem que não houve desvio de finalidade nestas instalações. - Conclusão:
Logo, tortura e morte eram a finalidade daqueles lugares das FFAA.
Foi a melancólica conclusão do jornalista Jânio de Freitas, na sua coluna na Folha de S.Paulo [‘O que as palavras dizem’, 22/junho/2014], assim expressa:
“Se os chefes militares consideram que nessas práticas não houve desvio de finalidade, está implícita a concepção de que tortura, assassinatos e desaparecimentos são uma finalidade do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em suas instalações. E salve-se quem puder”.
A CNV relacionou, para a Aeronáutica, uma morte e quatro casos de tortura na sua mais famosa instalação, a base aérea do Galeão, ao lado do aeroporto Tom Jobim, no Rio de Janeiro, onde estão baseados os cinco esquadrões de transporte que operam os 23 Hércules C-130 da FAB.
Resposta do tenente-brigadeiro do ar Juniti Saito, comandante da Aeronáutica, na conclusão da sindicância:
“Encaminho a Vossa Excelência os autos da sindicância, informando não houve desvirtuamento do fim público estabelecido para a Base Aérea do Galeão, no período em questão, que pudesse configurar desvio de sua finalidade regulamentar”.
A CNV apontou, para a Marinha, dois casos de torturas na base naval da Ilha das Flores, encravada na Baía da Guanabara. Resposta do almirante-de-esquadra Júlio Soares de Moura Neto, comandante da Marinha, na conclusão da sindicância:
“Enfim, à luz da ordem jurídica vigente à época, não se pode falar em desvirtuamento do fim público estabelecido para a instalação em comento, justamente porque esse local foi criado com o fim específico de se constituir em estabelecimento prisional”.
A CNV indicou, para o Exército, oito mortes e 11 casos de tortura em cinco quartéis diferentes, em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte. Resposta do general Enzo Martins Peri, comandante do Exército, na conclusão da sindicância:
“Uma vez que estes destacamentos eram órgãos oficialmente instituídos, foram formalmente instalados nos imóveis destinados ao seu funcionamento, não havendo qualquer registro de utilização dos mencionados imóveis para fins diferentes do que lhes tenha sido atribuído; portanto, não se verificou o alegado desvio de finalidade”.
O chefe do Exército se referia sem desvios aos Destacamentos de Operações de Informações (DOI), o braço executor dos temidos DOI-CODI, a coordenação repressiva que sucedeu em 1970 a Operação Bandeirante (OBAN), criada no ano anterior em São Paulo com o financiamento de empresários e banqueiros, articulados pelo ministro da Fazenda do Governo Médici, Delfim Netto.
A CNV relacionou os três DOI mais ativos da ditadura, instalados nos IV Exército (Recife), II (São Paulo) e I (Rio de Janeiro). Os próprios documentos secretos do Exército garimpados pela CNV provam, sem ironias, as finalidades sem desvio dos destacamentos de busca e apreensão montados pela repressão militar.
Os DOI paulista e carioca, os mais importantes do país, concentram nas duas maiores capitais brasileiras quase um quarto (23,8%) das vítimas oficiais da ditadura brasileira. Morreram ali, segundo documentação recolhida pela CNV, pelo menos 81 das 339 pessoas assassinadas sob tortura na ditadura — 51 no DOI-CODI da rua Tutoia, 30 no DOI-CODI da rua Barão de Mesquita.
Esperava-se que o Exército, bem mais poderoso e equipado do que a CNV, pudesse trazer dados ainda mais completos em sua sindicância, após disparar uma rajada de 10 diligências que se desdobraram em quatro ofícios para apurar os fatos.
A péssima pontaria da sindicância — presidida pelo general de divisão José Luiz Dias Freitas e deglutida em seco pelo comandante do Exército e pelo Ministro da Defesa — pode ser comprovada já nos dois ofícios (DIEx números 01 e 02, de 28 de março passado) enviados aos Comandos do Leste e Sudeste (antigos I e II Exércitos), solicitando informações sobre os DOI da Tutoia e da Barão de Mesquita “no período compreendido entre 18 SET 1946 e 5 OUT 1988″.
Não é preciso nenhum curso elementar da caserna para saber que o DOI-CODI foi criado apenas em 1970, tornando inúteis os 24 anos anteriores citados pelo general.
O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.
Fonte: Jornal Já