22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi – 3

 22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi (parte 3)

Um resumo infame

Apesar dos aparentes esforços, os militares parecem pouco diligentes em sua investigação. Na ‘Parte Expositiva’ de seu relatório (folha 159), o general sindicante chega a uma espantosa conclusão: “…não foram encontrados registros institucionais sobre a criação dos DOI”.

Um fracasso monumental, já que o Exército alega ter realizado pesquisas em seis acervos oficiais: os do Arquivo Nacional no Rio e Brasília, a biblioteca do STM (Superior Tribunal Militar) e três centros de Pernambuco. Para sua inepta pesquisa foram feitas, diz o general, “pesquisas históricas em publicações, livros, jornais, artigos e mídia em geral”. Apesar de tanto esforço, a sindicância conseguiu não descobrir nada.

A prova suprema do enorme malogro da pesquisa do Exército, que beira a má-fé e zomba da inteligência do povo brasileiro, está expressa em uma citação mais enxuta que caberia em uma única mensagem de Twitter — exatos 128 toques com espaço, apenas 17 palavas — extraída com o bisturi da maldade pelo general sindicante na página de um só livro, talvez o mais importante sobre a repressão.

Dali, o Exército pescou duas míseras linhas, que nada esclarecem, mas tudo sugerem sobre o flácido relatório da força terrestre:

No livro Brasil: Nunca Mais, em sua página 74, encontra-se o seguinte texto:
“[…] Dotados de existência legal, comandados por um oficial do Exército, providos com dotações orçamentárias regulares, os DOI-CODis […]“.

Se o responsável pela pesquisa do Exército fosse um pouco menos desleixado, tentaria não tropeçar nas reticências salvadoras da frase acima e teria transcrito todo o parágrafo, que acrescenta oito linhas essenciais à verdade dos fatos. Eis o que diz, além da omissão medida pelas reticências, o trecho completo da página 74 do Brasil: Nunca Mais que a distraída sindicância militar esqueceu de reproduzir na íntegra de sua resposta à CNV:

“[…] Dotados de existência legal, comandados por um oficial do Exército, providos com dotações orçamentárias regulares, os DOI-CODIs passaram a ocupar o primeiro posto na repressão política e também na lista das denúncias sobre violações aos Direitos Humanos. Mas tanto os DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, de âmbito estadual) como as delegacias regionais do DPF (Departamento de Polícia Federal) prosseguiram atuando também em faixa própria, em todos os níveis de repressão: investigando, prendendo, interrogando e, conforme abundantes denúncias, torturando e matando. […]”

A falha evidente não é só da transcrição incompleta, indecorosa. Faltou ao Exército a sensibilidade para dar a devida importância à sua fonte. O “Brasil: Nunca Mais” não é apenas um livro. É um marco de resgate histórico, um empreendimento corajoso que avança sobre a memória da repressão política no país. O Projeto Brasil: Nunca Mais vai muito além das parcas 17 palavras selecionadas com fino tato pelos generais para não melindrar os quartéis.

Começou em plena ditadura, em 1979, quando um grupo de advogados passou a coletar informações e evidências de violações aos direitos humanos praticados pelo aparato repressivo do Estado. Realizaram esse trabalho justamente nos arquivos insuspeitos do Superior Tribunal Militar (STM), aproveitando o prazo de 24 horas que cada advogado tinha para a custódia provisória dos autos.

Em uma secreta operação de inteligência que faria inveja aos generais, o grupo se organizou sob a liderança em São Paulo dos respeitados comandantes de três credos distintos: o cardeal Paulo Evaristo Arns, o pastor presbiteriano Jaime Wright e o rabino Henry Sobel.

Com os recursos captados em Genebra junto ao Conselho Mundial de Igrejas – organização ecumênica de 120 países onde se espalham 500 milhões de fiéis de 340 igrejas diferentes -, o grupo alugou discretamente uma sala com três máquinas xerox em um prédio do centro de Brasília, próximo à sede do STM.

Começou então o revezamento diário para retirar e vasculhar milhares de pastas de processos dos arquivos do STM. Durante mais de cinco anos, atravessando madrugadas, os advogados reproduziram pacientemente naquela sala discreta quase um milhão de páginas de 710 processos políticos que transitaram pela Justiça Militar entre 1964 e 1979.

Todo o material foi fotocopiados em 543 rolos de microfilme. Era um tesouro: a história viva contada nas próprias cortes castrenses pelas vítimas da tortura e da repressão impostas pelo regime militar brasileiro — sem desvios de finalidade — para extrair as confissões sangradas de seus presos políticos.

Tudo isso rendeu um documento de 6.891 páginas de horrores distribuídos por 12 volumes do Projeto A, dos quais se fizeram 25 cópias para serem guardados em segurança no exterior, longe da censura do regime.

O cardeal Arns, preocupado com a disseminação dessas informações para o grande público, pediu um Projeto B, um resumo da vasta pesquisa em um único livro. A edição, em espaço de texto que correspondia a 5% do original, foi realizada pelo jornalista Ricardo Kotscho e pelo frei Betto, autores do texto final de enxutas 312 páginas do livro “Brasil: Nunca Mais”, lançado em julho de 1985 — quatro meses após a saída, pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, do último general-presidente da ditadura, João Figueiredo.

O livro, um sucesso editorial que já teve mais de 40 edições no Brasil, foi lançado nos Estados Unidos, um ano depois, sob o título de Torture in Brazil, pela editora Random House.

Toda essa épica aventura, de números superlativos e coragem inaudita, ganhou um infame resumo de meras 17 palavras na sindicância do Exército, que passa com cara de paisagem pelo técnico, certeiro relatório da CNV.

Não há, na resposta militar, nenhuma alusão ou reação aos casos de tortura e morte alinhados pela Comissão da Verdade com minúcia de nomes, datas e locais. Se prestasse atenção pelo menos ao sumário do livro Brasil: Nunca Mais, o Exército poderia ter notado a ênfase dos títulos, nada ficcionais, dos seis capítulos da obra prefaciada pelo cardeal Paulo Evaristo Arns:

Primeira Parte/ Castigo cruel, desumano de degradante

Segunda Parte/ O Sistema Repressivo

Terceira Parte/ Repressão Contra Tudo e Contra Todos

Quarta Parte/ Subversão do Direito

Quinta Parte/Regime Marcado por Marcas da Tortura

Sexta Parte/ Os Limites Extremos da Tortura

Se tivessem a audácia de consultar o Sumário A, com a íntegra das quase 7 mil páginas dos 12 volumes do Projeto Brasil: Nunca Mais, os generais descobririam que três volumes do Tomo V têm o mesmo título: “As Torturas”. O volume 4 tem um tema ainda mais radical: “Os Mortos”.

 

O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.

Fonte: Jornal Já

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