22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi (parte 6)
Luís Cláudio Cunha
O inseparável DOI-CODI
A resposta do Exército à CNV é contraditória, quando afirma que o DOI é uma “força separada de sua organização principal”. A Diretriz Presidencial de Segurança Interna do general Médici, de 1970, nega esta separação, como enfatiza o próprio comandante do DOI da Tutoia, coronel Brilhante Ustra, curiosamente citado na sindicância militar com este trecho incisivo, extraído da página 125 de “Rompendo o Silêncio”:
“De acordo com essa Diretriz, em cada Comando de Exército, que hoje se denomina Comando Militar de Área, existiria:
– um Conselho de Defesa Interna (CONDI);
– um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI);
– um Destacamento de Operações de Informações (DOI); todos sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército.
Este Grande Comando Militar, quando no desempenho de missões de Defesa Interna, denomina-se Comandante de Zona de Defesa Interna (ZDI)”.
É o mesmo trecho que o general sindicante do Exército cita e extrai do Tomo 1, página 136, de uma obra literalmente de fôlego, com quase seis mil páginas e 10 kg de peso: a “Historia Oral do Exército. 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história”, organizada pelo general de brigada Aricildes de Moraes Motta.
A edição de 2004 da História Oral, publicada em 15 volumes, continua sendo publicada pela insuspeita Biblioteca do Exército, a Bibliex, que tem o seu conselho editorial presidido justamente pelo general Aricildes.
A confortável versão que define o DOI como ‘uma força separada de sua organização principal’, como sustenta o relatório do Exército de 2014, não expressa o que pensava o Exército de 1975, no auge da repressão militar.
No DOI-CODI mais funesto do país, o do II Exército na rua Tutoia, duas mortes de repercussão internacional em menos de três meses provaram que, de acordo com a Diretriz Presidencial de Segurança Interna ordenada em 1970 pelo general Médici, os DOI-CODI estavam “sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército”, como lembra até o coronel Brilhante Ustra.
Herzog e Fiel Filho, tortura e morte no DOI-CODI: ‘sem desvio de finalidade’
Às 8h da manhã de 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de SP, ingressou no prédio da Tutoia, convocado no dia anterior para prestar depoimento.
Sete horas e muitas torturas depois apareceu morto na cela do DOI, enforcado com o cinto do macacão que seus carcereiros esqueceram de retirar, para inflar a tese de ‘suicídio’.
Em março do ano passado, a mentira de 37 anos foi desfeita pela Justiça que, a pedido da Comissão Nacional da Verdade, mandou refazer o atestado de óbito de Herzog, agora reconhecido como morto “em decorrência de lesões e maus tratos sofridos durante interrogatório em dependências do II Exército (DOI-CODI)”.
Em um primeiro momento, o general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, sobreviveu ao ‘suicídio’ de Herzog. Menos de três meses depois, outro ‘suicídio’ abreviou a carreira do general.
Ao meio-dia de sexta-feira, 16 de janeiro de 1976, o metalúrgico Manoel Fiel Filho foi preso na fábrica e levado por dois agentes do DOI-CODI. Lá aguentou longas 25 horas. Uma nota oficial do II Exército anunciou que, às 13h de sábado, 17 de janeiro, o operário era a mais nova vítima do surto de ‘suicídio’ da ditadura.
Dessa vez, na falta de um cinto, tinha se enforcado com as meias, dizia a nota, embora calçasse chinelos sem meias na hora da prisão. Na contagem do jornalista Elio Gaspari, que o general sindicante não lembrou de citar, “Manoel Fiel Filho fora o 39º suicida do regime, o 19º a se enforcar”.
Era o mesmo DOI-CODI que, afirma o Exército hoje, não tinha desvios de finalidade.
Apesar de ser uma “força separada de sua organização principal”, conforme a inovadora definição lava-rápido do Exército, o DOI e sua peste de ‘suicídios’ geraram na época um tremendo desarranjo entre os generais da “organização principal”.
Preso na sexta 16, o operário morreu no sábado 17. Na segunda 19, sem qualquer consulta ao general Sylvio Frota (ministro do Exército), o general Ednardo foi demitido do comando de São Paulo por ato sumário do general Ernesto Geisel, o chefe supremo de todos eles.
No mesmo dia da demissão, Frota convocou a Brasília os 14 generais de quatro estrelas que integravam o Alto Comando para uma tensa reunião de duas horas realizada na quinta, 22 de janeiro.
Os comandantes de Porto Alegre (Oscar Luís da Silva, do III Exército) e do Recife (Moacyr Barcellos Potyguara, do IV Exército), bufaram contra a demissão de Ednardo. Até o chefe do Estado-Maior do Exército (Fritz Azevedo Manso), o número 2 da força, assoprava no balão da rebeldia.
O comandante do Rio (Reynaldo Mello de Almeida, do I Exército), com o apoio de outros quatro generais, botou água na fervura, lembrando que o Alto Comando não tinha competência para discutir a decisão sumária de Geisel.
Três dias depois, o ministro da Justiça, Armando Falcão, mandou um relatório secreto a Geisel, com base em conversa com o general Reynaldo. O relato de Falcão mostrava que o general Sylvio Frota estava agitado demais para um ‘suicídio’ de rotina em uma ‘força separada de sua organização principal’.
Diagnóstico de Falcão: “O Ministro [Frota] está nervoso. Sabe-se que teve um ligeiro desmaio em Brasília. Não consegue dormir direito”. O documento em duas páginas, com manuscrito de Geisel —”Do Falcão. Conversa com Reynaldo” — , acabou exilado no baú de preciosidades do general Golbery do Couto e Silva.
Uma semana depois da reunião do Alto Comando, o próprio Geisel, que não via o DOI-CODI como uma força separada do Exército, resolveu separar outro comandante da força: exonerou o general de brigada Confúcio Danton de Paula Avelino da chefia do Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto da corporação.
Este quadro de chiliques, insônia e nervos estressados entre os generais mais estrelados e experientes do Exército brasileiro, só por conta de dois ‘suicídios’ em São Paulo, torna ridícula a versão do relatório sobre o caráter do DOI assassino como ‘força separada’ de seu braço principal — o próprio Exército.
Todos esses fatos, ignorados pelo general sindicante, poderiam ter sido rapidamente acessados na internet, no arquivosdaditadura.com.br, um sítio precioso organizado por Elio Gaspari com base em papéis oficiais do general Golbery do Couto e Silva.
Lá, o Exército aprenderia com os documentos do próprio Exército como separar a força da realidade das ciladas da fantasia.
O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.
Fonte: Jornal Já