22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi – parte 9
Luís Cláudio Cunha
A pátria de coturno
A CNV fez mais, e fez melhor. Apresentou sua demanda em uma entrevista coletiva de imprensa de 72 minutos, transmitida pela internet e disponível no site da comissão.
Lá, a certa altura, o comissário e ex-ministro da Justiça de FHC José Carlos Dias ensinou: “Temos o direito de exigir informações. É obrigação das autoridades buscar a verdade”.
O comissário Paulo Sérgio Pinheiro enfatizou o absurdo da situação criada pela ditadura: “Havia um arquipélago de centros de tortura em instalações do Estado brasileiro, em todo o território nacional, à custa do contribuinte. Era uma violação sistemática, contínua, rotineira. Imaginem a cena! Enquanto havia gente numa sala batendo à maquina, fazendo seu trabalho burocrático, na sala ao lado tinha um pessoal usando o pau-de-arara nos presos”.
E como reagiram as FFAA? Mal, muito mal. Gastaram quatro meses para produzir sua oca sindicância de indulgência plenária, que nega qualquer abuso com o requinte de não responder a nenhum dos casos concretos laboriosamente levantados pela CNV. E a equipe do ministro da Defesa escolheu entregar o material em junho passado.
Não optou nem pela segunda-feira 16, nem pela quarta 18. O ministro Celso Amorim preferiu exatamente a estratégica tarde de terça-feira, 17 de junho, para mandar um emissário entregar a resposta dos chefes militares.
Para quem não lembra, era a tarde em que 200 milhões de brasileiros, todos juntos, formavam aquela corrente pra frente de olho grudado na TV para assistir ao empate em zero do Brasil contra o México em Fortaleza, o segundo jogo da seleção no Grupo A da Copa do Mundo.
A ardilosa pátria de coturno esperou que a distraída mãe gentil, a pátria de chuteiras se dedicasse à bola redonda da seleção verde-amarela, para remeter o quadrado pacote de documentos à CNV.
A tática, aparentemente, funcionou. Mais fascinada pelo goleiro mexicano Ochoa que travou o ataque de Neymar & cia, a imprensa canarinho de olho fixo no jogo em Fortaleza não deu pelota para a bola fora do esquadrão de Amorim em Brasília. E ninguém deu cartão vermelho para as botinadas do time brucutu das FFAA na equipe de verdade da CNV.
Na entrevista de quatro meses antes, em fevereiro, Paulo Sérgio Pinheiro tinha dito que as sete instalações militares escolhidas pontualmente pela CNV eram “uma pequena amostra’ da estrutura de Estado montada para torturar e matar”. Não era uma licença poética. Dois meses depois, a CNV foi além dos sete locais malditos.
Apresentou a lista e o endereço de outras 17 ‘casas da morte’, centros clandestinos de tortura espalhados por casas, chácaras e sítios particulares cedidos à brutalidade sem constrangimentos da repressão.
É um criterioso trabalho de pesquisa da CNV coordenado pela historiadora Heloísa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais e, como sempre, solenemente ignorado pelo generalato.
A CNV mapeou a cadeia de comando de sete desses centros, mostrando como operavam sob ordens de altas patentes do Exército e da Marinha. Foram localizados, com nomes e fotos, os locais de quatro Estados: três em São Paulo (fazenda 31 de Março, Itapevi e Ipiranga), um em Belo Horizonte (Casa do Renascença), um no Pará (a ‘Casa Azul’, o QG da repressão à guerrilha do Araguaia) e dois no Rio (‘Casa da Morte’, de Petrópolis, e a casa de São Conrado, bairro nobre da Zona Sul do Rio).
Os outros centros, deliberadamente ocultos até da legislação de exceção e agora sob investigação da CNV, se espalham por oito Estados.
As duas instalações clandestinas mais letais da lista eram operadas justamente pelo Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto que pairava acima dos DOI-CODI, sobre os quais o Exército diz não ter nenhum registro.
A ‘Casa da Morte’ – um simpático sobrado de dois andares em estilo alemão no bairro Caxambu, no pé da serra em Petrópolis, Rio de Janeiro – foi emprestada ao Exército pelo dono, o empresário Mário Lodders.
Entre 1971 e 1974, foi administrada pelo DOI-CODI do I Exército e pelo CIE. É muito estranho que o general sindicante não tenha localizado nada sobre ela, já que a casa é reconhecida até pelo general Adyr Fiúza de Castro no denso depoimento que deu a Maria Celina D’Araújo e Gláucio Ary Dillon Soares, para o livro “Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão” (ed. Relume-Dumará, 1994, pp. 35-80).
Fiúza, expoente da linha dura do regime, foi um dos criadores do CIE em 1969, quando ainda coronel chefiava a Divisão de Informações (D2) do ministro do Exército, Aurélio de Lyra Tavares. Em 1974, como braço-direito do general Sylvio Frota no comando do I Exército, assumiu a chefia do DOI-CODI do Rio de Janeiro. Ele chama docemente de ‘aparelho especial não oficial’ o que a CNV rotula, sem desvios, como clandestino.
O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.
O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.
Fonte: Jornal Já