22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi (parte 4)
Luís Cláudio Cunha
O Exército insubordinado
Mas os generais nem precisariam perder tempo lendo o livro que desprezaram. Poderiam ter acessado o arquivo digital do Brasil: Nunca Mais, no link http://bnmdigital.mpf.mp.br/, que desde 2013 dá acesso universal aos seus arquivos, em uma parceria entre o Ministério Público Federal e o Arquivo Público de São Paulo.
Lá, curiosamente, os documentos não consultados pelo Exército identificam e registram os termos que o Exército não conseguiu localizar em seus registros. Basta teclar em qualquer computador com acesso à internet e o milagre se faz. Aparecem 638 indicações no acervo digital quando se busca o desaparecido ‘destacamento’ — 134 entradas para a palavra ‘Destacamento de Operações de Informações’ e outras 504 para a dupla ‘DOI-CODI’.
A ilustre antecessora aparece 927 vezes quando se tecla ‘Operação Bandeirante’ (285 ocorrências) ou simplesmente OBAN (642 registros). Quando não há desvio de finalidade em uma pesquisa honesta, ela revela muita coisa, ou quase tudo.
O Exército deveria ter seguido a metodologia séria da CNV, que já na apresentação de seu relatório preliminar identifica as fontes principais de sua pesquisa: são documentos produzidos pelo próprio Estado brasileiro que o Exército parece não levar a sério.
A CNV se valeu dos processos deferidos pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e, para nomear os presos políticos mortos por torturas aplicadas por agentes do Estado em instalações militares, foram pesquisados processos aprovados pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Ali mesmo, onde dá expediente a Comandante-Suprema das Forças Armadas, que na juventude sentiu na carne as torturas, infelizmente não registradas pelo Exército .
Não é novidade, aliás, o desprezo que as Forças Armadas da democracia dedicam aos trabalhos que visam apurar os abusos praticados pelas Forças Armadas da ditadura, que durante duas décadas montou um aparato repressivo estimado em 24 mil agentes que prenderam por razões políticas cerca de 50 mil brasileiros e torturaram algo em torno de 20 mil pessoas – quase três a cada dia do regime militar.
Os militares já tinham reagido mal, em agosto de 2007, quando o Palácio do Planalto lançou o livro “Direito à Memória e à Verdade”, um fundamental trabalho de 11 anos da Secretaria Especial de Direitos Humanos, iniciado ainda no Governo Fernando Henrique Cardoso (secretário José Gregori) e concluído no Governo Lula (secretário Paulo Vannuchi), reconhecendo pela primeira vez a responsabilidade do Estado brasileiro na violência oficial, com a lista de 339 mortos e desaparecidos pela repressão política.
Acintosamente, nenhum chefe militar compareceu à cerimônia solene presidida no Planalto pelo comandante-em-chefe das Forças Armadas, o então presidente Lula. Eram os mesmos chefes militares — o general Peri, o brigadeiro Saito e o almirante Moura Neto — que Lula deixou como legado a Dilma e que permanecem em seus postos desde 2007, há mais tempo do que um mandato presidencial.
São os mesmo chefes militares que, em maio de 2012, se mantiveram acintosamente estáticos, mãos no colo, enquanto a plateia no salão principal do Palácio do Planalto aplaudia com emoção o ato da presidente Dilma Rousseff que instalava oficialmente a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de investigar sem desvios os abusos praticados, entre outros, pelas Forças Armadas. [Veja revista Brasileiros, edição nº 78, de janeiro de 2014]
O “Direito à Memória e à Verdade”, um indesmentido livro-relatório de 500 páginas — preciso pelos fatos e comovente pelos horrores que descreve —, é acintosamente ignorado pelo Exército, que não o cita uma única vez em sua sindicância. Mas, como outros, já está disponível na internet, no portal do Governo Federal (http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_direito_memoria_verdade/), com todos os dados que o Exército não conseguiu encontrar em seus registros.
O DOI, por exemplo, aparece em 683 citações. A dupla DOI-CODI surge 283 vezes no arquivo digital. A OBAN ou Operação Bandeirante, outras 46 vezes. Palavras inequívocas como ‘tortura’ (523 citações), ‘torturador’ (47) e ‘pau-de-arara’ (21) aparecem na pesquisa digital sempre associadas aos DOI e às instalações militares que, sem desvio de função, eram administradas e operadas pelas Forças Armadas.
Os dados que o Exército estranhamente não conseguiu descobrir em seus próprios arquivos ou não procurou nos acervos abertos do próprio Governo foram encontrados pelo mesmo Exército em duas ‘obras literárias’, na maliciosa expressão pinçada pela sindicância militar para definir ‘literário’. Segundo o paisano Dicionário Houaiss, o adjetivo traduz, no seu sentido figurado, “uma imagem artificial da realidade”.
Miopia e amnésia
A primeira fonte ‘literária’ é um livro insuspeito, “Rompendo o Silêncio”, do coronel reformado de Artilharia Carlos Alberto Brilhante Ustra, por acaso o criador e primeiro comandante do DOI da Tutoia, o endereço mais letal do Exército e que, por conclusão de seus comandantes, nunca teve o “alegado desvio de finalidade”.
A segunda é “A Ditadura Escancarada”, do jornalista Elio Gaspari, que sustenta boa parte de sua autópsia em quatro volumes da ditadura nos alentados arquivos do general Golbery do Couto e Silva, cérebro da conspiração que levou à derrubada de João Goulart.
Só ali o desatento Exército brasileiro conseguiu afinal garimpar a secreta Diretriz Presidencial de Segurança Interna que o general Garrastazú Médici inventou, em março de 1970, para unificar a repressão sob o comando da força terrestre. Dali nasceriam seis meses depois, na primeira quinzena de setembro de 1970, os DOI, “todos sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército”, como registra o sagaz coronel Brilhante Ustra.
Alguém precisa apresentar os arquivos do mais notório comandante do DOI da Tutoia aos atuais chefes militares, que aparentemente não estão lendo as coisas devidas.
O Exército justifica sua estrábica pontaria alegando que não existem nos seus arquivos os documentos das décadas de 1960 e 1970 classificados como sigilosos. Mais do que miopia, o caso aqui envolve amnésia coletiva.
Nenhum oficial com estrelas no ombro parece ter lembrado de recorrer a um acervo precioso, e até hoje intocado: os arquivos do Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto da força, o braço operacional que está na linha de frente da repressão à esquerda armada.
Os nomes mais afamados dos DOI, como os coronéis Brilhante Ustra (II Exército) e Paulo Malhães (I Exército) eram egressos do CIE. Os registros do Centro de Informações certamente dariam o conteúdo que falta à sindicância do Exército porque, afinal de contas, o CIE mais do que fazia. O CIE, por dever de ofício, sabia.
Coronéis Brilhante Ustra e Paulo Malhães, do CIE para o DOI-CODI: ‘sem desvio de finalidade’.
O general sindicante, que diz pouco saber, confessa que não conseguiram encontrar nenhum registro sobre a destinação administrativa e o uso dos imóveis destinado ao DOI no Rio e no Recife. E dá a razão: “Tal fato se deve ao caráter sigiloso dado aos documentos que tratavam sobre Segurança Interna à época. Salienta-se que essa documentação foi legalmente destruída, bem como os eventuais Termos de Destruição, tudo devidamente apurado por meio do Procedimento Investigatório”.
Traduzindo o militarês: os documentos que poderiam detalhar o uso de instalações transformadas em centros de tortura e morte foram despedaçados e os documentos que permitiram esse abuso de lesa-memória também foram destroçados. Simples assim.
Não são apontados os nomes dos responsáveis por essa dupla destruição e as razões que privam o país, agora, de conhecer detalhes escabrosos de seu passado recente.
Do sangrento DOI de São Paulo, o único documento que sobreviveu a este apagão burocrático não é militar, é civil. Conforme a sindicância, sobrou apenas o “Memorial Descritivo” da prefeitura de Paulo Maluf, de agosto de 1971, formalizando a concessão de uso ao então Ministério do Exército, ‘a título precário’, do imóvel que tornaria notória a esquina das ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, no bairro paulistano de Vila Mariana.
Derrotado em seu hercúleo esforço de busca e apreensão de documentos úteis que pudessem atender à CNV, o Exército chega a esta opaca conclusão:
“Portanto, infere-se que, do ponto de vista administrativo, os DOI constituíam órgãos de segurança interna, criados e instalados legalmente, de modo a permitir-lhes o exercício de suas atividades, conforme previsto na Diretriz Presidencial de Segurança Interna. Nesse sentido, no acervo pesquisado não foram encontrados registros formais que permitam comprovar ou mesmo caracterizar o uso de suas instalações para fins diferentes dos que lhes tenham sido prescritos”.
Para responder à intrigante questão sobre a alocação de pessoal para estas “instalações afetadas às Forças Armadas e utilizadas para perpetração de graves violações de direitos humanos”, conforme o título do relatório preliminar da CNV, o general dá uma resposta intrigante. Diz:
“O termo Destacamento, adotado pelo Exército Brasileiro, caracteriza parte de uma força, separada de sua organização principal, destinada a cumprir missão em outra região, com efetivo normalmente reduzido e organização variável, dependendo da situação. Coerente com tal definição, os DOI não possuíam constituição fixa”.
“Em decorrência disso, os militares das Forças Armadas eram passados à disposição para desempenhar atividades temporárias, os quais eram oriundos de diversas Organizações Militares (OM) do país; tal qual ocorria com policiais civis, policiais militares e integrantes do Departamento de Polícia Federal. Destaca-se que o ato de passagem à disposição de militar para o Destacamento, visando o cumprimento de missão ou atividade temporária, prescindia de registro”.
O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.
Fonte: Jornal Já