22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi (parte 8)
Luís Cláudio Cunha
A morte da MPB
Os dois militares terroristas do DOI-CODI — o sargento morto e o capitão socorrido com as vísceras de fora — não foram as únicas baixas da ditadura. A evisceração do regime foi ainda mais notável nos meses seguintes.
O general João Figueiredo infartou na presidência, o general Golbery do Couto e Silva demitiu-se da Casa Civil, o general Octávio Aguiar de Medeiros (chefe do SNI) implodiu como virtual candidato a uma sexta presidência fardada e o regime militar definhou até morrer, sem choro nem vela, no remanso do Colégio Eleitoral que sagrou Tancredo Neves como primeiro presidente civil desde 1964.
O RIOCENTRO NO COLO DA DITADURA
Figueiredo, presidente, infartado… Golbery, ministro da Casa Civil, demitido… Medeiros, chefe do SNI, implodido.
Naquela noite, data do maior ‘acidente de trabalho’ da escalada terrorista do DOI-CODI do Exército, o número de mortos e feridos do atentado poderia ser muito maior. Além da bomba que explodiu no estacionamento, outro artefato explodiu na casa de força do Riocentro.
O objetivo era o corte de energia que impedisse o show e causasse tumulto, mas o artefato não causou o efeito desejado. Depoimentos apontam que duas bombas sob o palco foram retiradas do local antes de serem detonadas e testemunhas afirmam que havia outras duas bombas no Puma do DOI-CODI, que foram retiradas da cena do crime.
O tumulto previsível de explosões coordenadas em recinto fechado, com as portas de saída criminosamente trancadas com cadeados, certamente provocaria uma tragédia amplificada na plateia de 20 mil pessoas.
E as bombas sob o palco, detonadas no momento esperado do encerramento, quando todos os artistas se reúnem para a apoteose final do show, produziriam uma hecatombe na Música Popular Brasileira.
Junto com Chico Buarque, lá estavam 30 dos mais famosos e carismáticos astros da MPB. Entre eles, Paulinho da Viola, Luiz Gonzaga e o filho Gonzaguinha, Cauby Peixoto, Clara Nunes, Gal Costa, Ivan Lins, João Bosco, Alceu Valença, Elba Ramalho, Djavan, Fagner, Moraes Moreira, Ângela Ro-Ro, Simone, Zizi Possi, MPB-4 e Beth Carvalho.
“A ditadura militar fez isso. Ia matar todos nós, artistas”, lembrou Beth Carvalho.
Traduzindo: a missão do DOI-CODI naquela noite também mataria a MPB. O Exército infelizmente não esclarece, na resposta à CNV, se o eventual sucesso de seu braço terrorista naquele atentado meticulosamente planejado poderia ser enquadrado como uma finalidade sem desvios do DOI-CODI.
O Exército que não consegue ver a essência do DOI-CODI, em sua precária sindicância, deveria ter o método de trabalho e a seriedade de gente como o pesquisador Pedro Estevam da Rocha Pomar, que em 2000 descobriu uma preciosidade no acervo do DOPS paulista, hoje depositado no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
É o RPI 06/75, o Relatório Periódico de Informações do II Exército, reconhecendo a morte de 50 presos no DOI-CODI da rua Tutoia, de 1969 até fevereiro de 1975.
O registro, classificado como ‘confidencial’, foi produzido dias depois, em março de 1975, e as 23 páginas do RPI são rubricadas pelo ‘Gen d’Ávila’. É o nome do comandante do II Exército na época, o general Ednardo d’Ávila Mello, que acabaria exonerado um ano depois por Geisel, após o ‘suicídio’ de Manoel Fiel Filho no DOI-CODI.
O RPI 06/75 rubricado pelo general Ednardo reconhece 47 mortos entre os “presos pelo DOI” e outros três mortos “recebidos de outros órgãos”. O repórter Mário Magalhães, da Folha de S.Paulo, que revelou a descoberta de Pomar há 14 anos, fez uma arguta observação sobre o documento:
“Os 47 mortos (não há descrição de nomes e das condições das mortes) são um subitem do item ‘presos pelo DOI’, e não um item à parte. Pela lógica, foram presos e, depois, mortos. […] Os três mortos entre os ‘recebidos de outros órgãos’ reforçam a impressão de que morreram na rua Tutóia, a não ser que o DOI-CODI recebesse cadáveres”.
Apesar dessas provas documentais, o criador e comandante do DOI da Tutoia em seus primeiro quatro anos, coronel Brilhante Ustra, insiste na tese da finalidade sem desvios abraçada pelo Comandante do Exército e pelo Ministério da Defesa: “No meu comando, meu senhor doutor Fonteles, ninguém foi morto lá dentro do DOI”.
“Todos foram mortos em combate. Os que o senhor diz que foram mortos dentro do DOI, não é verdade. Eles foram mortos pelo DOI em combate, na rua. Dentro do DOI, nenhum!”, gritou Ustra irritado, socando a mesa, diante da pergunta do ex-procurador-geral da República e então comissário da CNV, Cláudio Fonteles, na audiência pública realizada em maio de 2013 em Brasília.
Um bom exemplo da disparidade entre a Comissão Nacional da Verdade e as Forças Armadas, na busca da verdade e dos fatos, está no método utilizado por uns e outros para cumprir sua missão legal e ética diante da Nação brasileira. A CNV atua de forma aberta, transparente, direta, sem desvios. As FFAA, não.
O pedido formal de informações sobre a ‘ocorrência de graves violações de direitos humanos em instalações administrativamente afetadas às Forças Armadas’ foi apresentado pela CNV em sessão aberta, em 18 de fevereiro passado, com a distribuição do texto do relatório preliminar, detalhando fatos, nomes e testemunhos de 11 ocorrências de tortura e de 8 casos de morte, incluindo fotos e croquis dos quartéis e bases militares utilizados para o ‘alegado desvio de finalidade’.
O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.
Fonte: Jornal Já