22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi – 5

22 dias de Dilma Roussef no Doi-Codi (parte 5)

Luís Cláudio Cunha

Os ‘doutores’ e suas ferramentas

A inusitada confissão do Exército à CNV sugere uma bizarra liberalidade do Alto Comando da época sobre a linha de frente da repressão. Dá a imagem assustadora de uma tortuosa cadeia de comando que estimulava ações encobertas e ilegais e garantia, no futuro, o anonimato e a clandestinidade, premissas básicas da impunidade que ainda hoje protege os agentes da ditadura.

É no mínimo estranha a noção de uma corporação fundada na lei, na ordem e na hierarquia, como é o Exército, convivendo com um Destacamento de segurança interna caracterizado como “parte de uma força separada de sua organização principal” e sem limitação de fronteiras.

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Pior ainda. Pela sindicância do Exército, o DOI era “parte de uma força … destinada a cumprir missão em outra região com efetivo normalmente reduzido e organização variável, dependendo da situação” (sic).

Na prática, essa elástica e imprecisa definição confirma os depoimentos de ex-presos e sobreviventes da ditadura sobre o braço longo e ilimitado do DOI-CODI, um aparato nada estático e muito errático, de “atividade temporária”, que juntava militares das três Forças Armadas, policiais civis, homens da Polícia Militar e agentes da Polícia Federal agindo de forma coordenada e combatendo onde fosse necessária a repressão — “destinado a cumprir missão em outra região”.

Entende-se, daí, que comandos do DOI da rua Tutóia, baseado no II Exército de São Paulo, pudessem agir sem qualquer restrição geográfica — por exemplo, no Rio de Janeiro, onde está baseado o DOI do I Exército, instalado na rua Barão de Mesquita. E vice-versa.

Apesar de atuar na primeira trincheira de combate à luta armada, o efetivo de ferro e fogo alistado pelo DOI do Exército em vários quartéis e organismos de segurança do país não tinha cara, nem nome, nem posto, nem identidade, já que estranhamente essa tropa tão lancinante e variada “prescindia de registro” (sic) .

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A imprevista derrapada do general sindicante, nessa expressão de renúncia explícita à identidade, reconhece oficialmente que o Exército engajado na repressão tinha o anonimato como opção preferencial para sua tropa. Era uma conduta esquiva reforçada nos torturadores pelo disfarce dos codinomes (o coronel Brilhante Ustra era o Dr. Tibiriçá no DOI do II Exército em São Paulo, o coronel Paulo Malhães era o Dr. Pablo no DOI do I Exército no Rio de Janeiro) ou camuflada pelo uso sistemático do capuz nos torturados, nos momentos mais terríveis do ‘pau-de-arara’, da ‘cadeira-do-dragão’, do choque elétrico da ‘pimentinha’, da palmatória, das sessões de afogamento nas masmorras.

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Sem registro de uso dos imóveis para fins diferentes do atribuído”, responde o Exército

Os encobertos agentes do DOI, que ali atuavam sem o ‘alegado desvio de finalidade’, na palavra oficial do Exército, acabariam contaminando pelo menos uma instância da própria Justiça Militar com sua obsessão pelo encoberto, pelo oculto, pelo escondido.

Aconteceu em novembro de 1970, na 1ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro, justamente com uma vítima do DOI paulistano, o centro de torturas da rua Tutoia. Uma guerrilheira do grupo VAR-Palmares, ‘Estela’, codinome de Dilma Rousseff, então com 22 anos, aparece em uma foto no momento em que era ouvida pelos juízes militares.

O flagrante em preto e branco resgatado pelo jornalista mineiro Ricardo Amaral para seu livro, “A Vida Quer É Coragem”, é a imagem mais emblemática de uma época cinzenta conhecida pelo chumbo quente da tortura, que a literária sindicância do Exército não registra.

O que chama atenção na foto não é a jovem guerrilheira em primeiro plano, uma Dilma quase menina. O que avulta na foto são os dois personagens em segundo plano, juízes fardados da Corte militar, cobrindo o rosto para não serem identificados.

Na falta de um capuz, os magistrados, bem mais velhos do que a jovem à sua frente, usam as mãos para ocultar o rosto diante do fotógrafo. Os dois julgadores, em uma impiedosa inversão de papéis, escancaram ali a dolorida consciência de que podem até condenar, mas não serão absolvidos pelo juízo inapelável da História.

Pela desonra da imagem, eles é que parecem ser os réus, apequenados diante de uma julgadora implacável. Pelo inusitado da cena, os dois juízes que se escondem se assemelham aos anônimos beleguins que atuavam nos DOI, como eles prescindindo de registro — principalmente fotográfico.

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O homem à esquerda é um capitão, o da direita exibe nos ombros os galões de major. Fora da foto, quase em frente à jovem, senta-se o presidente do tribunal, um coronel. Na outra ponta da bancada acomodam-se mais dois juízes militares, os vogais.

O fotógrafo anônimo, por alguma razão, estava ali autorizado pelo coronel para fazer o registro da audiência e os dois juízes flagrados por sua lente sabiam do perigo iminente da foto.

Por isso, trataram de esconder suas identidades, na esperança de que essa tentativa de fuga à responsabilidade lhes assegurasse o pleno anonimato e a eterna impunidade. Livraram a cara e deixaram seus nomes na clandestinidade, como era hábito e licença entre os agentes do DOI.

Assim, contudo, delataram na cena muda das mãos a verdadeira face do regime que representavam naquele tribunal de exceção armado por militares para julgar civis, marca distinta de todo regime autoritário que não se desvia de suas finalidades. Não atentavam para um profundo pensamento marxista, que ensina: “Justiça militar é para a justiça o que música militar é para a música”, pregava Groucho Marx (1890-1977), perigoso comediante estadunidense, líder da ativa organização anarquista conhecida no cinema como ‘Irmãos Marx’.

 

O repórter LUIZ CLÁUDIO CUNHA, reconhecido como Notório Saber em Jornalismo pela Universidade de Brasília, ganhou projeção ao denunciar, em 1978, o sequestro de uruguaios pela Operação Condor em solo brasileiro. Desde então, ocupou postos de peso na carreira, como a direção em Brasília das sucursais das revistas Veja e IstoÉ e do jornal O Estado de S.Paulo. Quando consultor da Comissão Nacional da Verdade, foi afastado em julho passado por criticar a postura de alguns de seus integrantes e apontar a falta de empenho do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército e da Marinha no esclarecimento de crimes da ditadura.

Fonte: Jornal Já

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