Brincar é coisa séria!

Brincar é coisa séria!

Documentário brasileiro aborda a relação com o lúdico como exercício de criatividade e possibilidade de experimentação

Gláucia Leal

Todo mundo sabe: medicamentos tarja preta, comercializados com prescrição médica, são usados principalmente para controlar sofrimentos psíquicos. As pílulas que prometem apaziguar a ansiedade e a depressão são vendidas aos bilhões pela indústria farmacêutica. De fato, em muitos casos, remédio é necessário – mas em outros tantos poderia ser dispensado desde que fossem tomadas outras medidas para aplacar as dores da alma. E o que se espera desses remédios? Que restituam a saúde, tragam alívio, ajam rapidamente e apaziguem a angústia.  O documentário brasileiro Tarja branca – A revolução que faltava, produzido pela Maria Farinha Filmes, recorre ao termo “tarja” justamente para apresentar um contraponto – sem efeitos colaterais ou necessidade de receita – como outra saída para lidar com a tristeza e a falta de criatividade, na contramão de um caminho que vem de fora para dentro, em forma de pílulas.

Dirigido por Cacau Rhoden, o filme trata da valorização e do resgate do elemento lúdico em todas as faixas etárias (e não apenas na infância). São apresentados depoimentos de adultos de diferentes profissões, idades e origens tanto sobre sua relação subjetiva com o brincar quanto reflexões acerca desse ato ancestral que funciona como elemento de coesão, pertencimento e integração social fundamental para o desenvolvimento físico, intelectual e afetivo. Essencial na infância, esse ato ancestral nos permite experimentações não apenas no âmbito das ações, mas também no que diz respeito às formas de conhecer a si mesmo, se relacionar com o mundo, trocar de lugar, obter outros pontos de vista, repetir, elaborar, aprender.

O brincar pode ser pensado, por exemplo, como uma forma livre de expressão da criança, uma espécie de linguagem do espontâneo. “Se os meninos não brincam, eles ficam diminuídos em suas possibilidades de manifestação”, comenta uma das entrevistadas, Lydia Hortélio, professora de música e pesquisadora. “A ciência pedagógica, cada vez mais sofisticada, ensina a gente a fazer vestibular. Mas ninguém nasceu para fazer vestibular, nascemos para ser gente, para expressarmos em plenitude e liberdade todos os talentos que cada ser humano tem.”

Outra entrevistada, a educadora Renata Meirelles, criadora do projeto Brincadeiras Infantis da Região Amazônica (Bira), se lembra da tristeza que sentia na infância ao ver sua mãe deitada na praia, tomando sol, enquanto ela brincava na areia. Parecia inconcebível para a menina que alguém simplesmente não quisesse brincar, tendo a oportunidade de fazê-lo, e temia que a mãe, por algum motivo, não pudesse experimentar esse prazer. Outros entrevistados, como os escritores Marcelino Freire e Bráulio Tavares, o jornalista José Simão, a pedagoga Ana Lúcia Villela, o ator Domingos Montagner e o músico Antônio Nóbrega, também falam das próprias experiências e associam a impossibilidade de brincar com o adoecimento psíquico.

Para psicanalistas o desinteresse de uma criança por essa atividade é um sintoma claro de que há algo errado. Em nossa sociedade, porém, frequentemente os adultos perdem a conexão com a própria capacidade lúdica, sem que isso seja motivo de estranhamento ou preocupação. Quando nos afastamos do exercício lúdico da curiosidade – seja por meio do som, do movimento, da palavra, dos pensamentos ou de infinitas outras maneiras de expressão – um organizador psíquico fundamental também se esvai.

Não raro, a impossibilidade de vivenciar no dia a dia o humor, a alegria, permitir-se rir e jogar faz com que as pessoas se entristeçam – e muitas vezes adoeçam. Nesse sentido, a identidade cultural revelada por meio da arte tem imensa importância, na medida em que propicia um espaço privilegiado e protegido para a experimentação e, consequentemente, para a preservação da saúde.

Da mesma forma, encontrar prazer na atividade profissional e desenvolvê-la com criatividade nos lembra que brincar pode ser algo muito sério. Sem precisar ser sisuda, sofrida ou extenuante, a seriedade está associada ao comprometimento e à dedicação intensa e autêntica. Podemos evocar um recorte claro dessa ideia: basta pensar na compenetração de uma criança entretida ao brincar. Nada mais sério, nada mais leve. E sem contraindicações.

Fonte: Mente e Cérebro

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