Carlos Latuff, alguém que desenha…

Carlos Latuff, um desenhista com causa

 Vitor Taveira

O carioca Carlos Latuff (Twitter: @CarlosLatuff) é um desenhista nato. Nasceu com esse talento e teve a competência e sorte de conseguir sobreviver por ele. Mas não como esperava: fechadas as portas da grande mídia, foi encontrar abrigo na imprensa alternativa. O contato com jornais de esquerda fez do jovem desenhador um homem militante, pero sin perder el arte jamás. Hoje, Latuff se define como artista e militante, consciente de seu trabalho: “Se eu faço uma charge estou emprestando meu traço, meu talento e minha criatividade pra promover uma idéia.” Por meio da internet, suas charges rodaram o mundo e são encontradas em camisas, pôsteres e cartazes em atividades ou manifestações políticas. O chargista nos concedeu uma entrevista de mais de uma hora que disponibilizamos na íntegra em arquivo aqui. Seus desenho dizem muita coisa e suas palavras também. Publicamos a seguir parte da entrevista- com destaque aos assuntos relacionados a América Latina, tema desse blog.

Como você começou a se interessar pelo desenho e pela política? Quando juntou os dois?
Desenho é uma coisa que sempre me acompanhou desde pequeno. Eu costumava ver desenhos animados na televisão, na decada de 70. Gostava de copiar o que via na TV, coloria, criava personagens. Como sou de família humilde, não tinha perspectiva de que pudesse trabalhar com isso. A visão de artista era associada à classe média. Então meus pais imaginaram que eu seria desenhista mas seria mais por hobby do que trabalhar efetivamente com isso.

Em 89, eu consegui um trabalho de ilustrador em agência de propaganda. Passei um ano, adquiri alguma experiência e em 1990 eu sai dessa agência e comecei a fazer carreira solo. Eu tinha ilusão de classe de que com aquele portfólio mixuruca poderia bater nas editoras, nas redações de jornal e conseguir alguma coisa. Foi um fracasso, ninguém abriu portas pra mim. Afinal quem realmente me deu uma oportunidade foi a imprensa sindical de esquerda, pra quem eu trabalho até hoje e é minha fonte de renda.

Até 1996, a minha relação com a imprensa sindical foi estritamente profissional. Eu trabalhava pra eles mas achava que era possível trabalhar pra qualquer um que me pagasse. A partir de 96, quando eu conheci o trabalho dos zapatistas e comecei a conhecer a internet, é que nasceu o que se poderia chamar do militante. A partir daquele momento eu vi sim uma impossibilidade de servir a dois senhores: ou é uma coisa ou é outra. Então esse contato com o movimento zapatista através da internet serviu pra consolidar um processo.

Como você conheceu o movimento zapatista e por que isso mudou sua visão?

Eu tinha assistido a um documentário na televisão a respeito do levante zapatista e aquilo me emocionou muito e me abriu os olhos para a importância da arte a serviço de uma causa. Foi naquele momento que eu percebi que o trabalho que eu faço não é apertar parafusos, é um trabalho ideológico. Se eu faço uma charge para um jornal de direita eu estou mais que simplesmente tendo uma relação profissional, eu estou emprestando meu traço, meu talento e minha criatividade pra promover uma idéia. Por isso que a partir daquele momento eu entendi que não era possível exercer a atividade de cartunista para qualquer um como se fosse apenas um trabalho. Eu decidi que só iria promover os conceitos que eu realmente acreditasse, causas que eu realmente abraçasse.

Trabalhar com a imprensa sindical não foi um trabalho impune. Mesmo que eu achasse que fosse uma atividade meramente profissional, eu estava sendo impregnado com aquelas idéias e com aqueles conceitos sem que eu soubesse. Então, esse contato com os zapatistas me despertou pra esse processo que já estava em andamento há muito tempo. A partir de 1996 é que eu comecei a fazer uma militância artística, inicialmente para os zapatistas, depois para os palestinos e aí comecei a colaborar com diversos movimentos sociais no Rio de Janeiro, no Brasil e fora do Brasil.

É mais ou menos essa a minha trajetória. Geralmente, quando se é militante na juventude você cresce e se torna um reacionário filho da puta, no meu caso era diferente porque eu era um sujeito que não tinha militância alguma, tinha trabalhado com as idéias do senso comum, trabalhado com a imprensa sindical como se fosse meramente uma relação profissional. Mas com o passar do tempo eu fui compreendendo que era bem mais do que isso e agora que eu já estou um pouco mais velho que eu me entendo não só como artista mais também como militante.

Como se divide o trabalho do Latuff profissional do Latuff militante?
O meu trabalho pode ser dividido em dois: um é esse trabalho profissional que eu presto para publicações sindicais aqui no Rio de Janeiro e algumas do Brasil. Tenho identificação ideológica mas também sou pago por ele, é o que me sustenta. Na internet eu tenho uma atividade que tem mais a ver com um ativismo artístico, agente poderia dizer assim.

A causa palestina é um bom exemplo. Todos os desenhos que eu faço sobre a questão palestina, sem excessão, eu não cobro. E as pessoas que querem utilizar esse desenho também não precisam me pagar nada, mesmo que elas queiram ganhar dinheiro em cima desse desenho fazendo camisa ou poster. Porque primeiro por uma questão ética: eu não quero faturar um tostão sobre esse trabalho, porque faço por amor mesmo. E estratégico, porque eu quero que esse trabalho seja copyleft, não tenha direitos autorais, pra que ele possa ser espalhado pelo mundo. Eu quero que essas imagens que de certa maneira mostrem a Palestina de uma maneira positiva, coisa que a imprensa ocidental não faz.

Existem também trabalhos que eu faço aqui no Brasil sobre a violência policial ou para movimentos sociais, movimento estudantil e que não cobro nada. Eu posso fazer isso exatamente porque o trabalho na imprensa sindical de esquerda me sustenta, então eu posso me dar a esse luxo de trabalhar de graça para movimentos sociais.

Você já conheceu algum país da América Latina?
Só o Panamá. Estive no Panamá um ano depois da derrubada do Noriega. Foi uma experiência legal porque foi o primeiro país estrangeiro que eu visitei na minha vida. O meu olhar naquela época não era militante, era um olhar curioso. Foi mais uma experiencia pessoal, turística, até histórica, do que militante. Apesar de eu ter participado lá de uma passeata contra a ocupação americana, não foi uma visita militante. Se eu fosse hoje seria diferente. Naquela época eu ainda estava muito novo, meio inexperiente pra primeira viagem.

Como você vê o atual momento político da região?
Eu estou assistindo esses processo com bons olhos, particularmente na Bolívia. Infelizmente não tive oportunidade de viajar para a Bolívia mas eu acompanhei os acontecimentos desde a Guerra do Gás e aquilo foi realmente uma lição de história para todos nós da América Latina, todo aquele movimento que culminou com a eleição do Evo Morales e as tentativas de golpe contra ele. O Evo não é um revolucionário mas ele tem feito um trabalho importante que é colocar na pauta do dia um segmento social que sempre foi negligenciado. Isso inclusive causou uma indignação muito grande por conta desse setor mais conservador, ligado ao colonizador branco espanhol lá na Bolívia. Então ele colocou o povo indígena na agenda do dia, como agente das tranformações, resgatou o papel histórico do indígena. Eu achei fantástico.

Comparando com os anos 70 e 80 em que a América Latina foi assolada por governos de direta, pró-americanos, govenos fascistas, ditaduras, eu vejo com bons olhos a situação na América Latina nos dias de hoje.

Quais os povos oprimidos na América Latina? Que causas se deve defender?
O sistema capitalista só consegue produzir disparidades, exclusão, oprimidos. Você vai encontrar pela América Latina, excetuando Cuba, todo tipo de causas a se defender. Pese que a América Latina nos últimos anos tem voltado suas atenções, sua militância para um viés de esquerda, seja na Venezuela, na Bolívia, no Paraguai, no Uruguai, no Equador, Nicarágua. A América Latina tem todo tipo de causa a se defender, seja, por exemplo, a causa indígena na Bolívia, os mapuche no Chile, aqui no Brasil mesmo você tem a [falta de] reforma agrária que é um problema gravíssimo.Tem a causa da violência policial nas favelas, em todas as periferias do Brasil. Quem tem olhos que veja, as causas pululam, o que não faltam são causas sociais relevantes para se abraçar.

Em Cuba também não há opressões?
Eu não posso falar muito de Cuba, porque nunca estive lá. As referências que tenho é de amigos que estiveram lá. Eu acho que o fato de não ter um menino cheirando cola no sinal é um bom indicativo sobre Cuba. Cuba não é um paraíso porque é lugar no Planeta Terra. É gente que tá lá, que tá no governo, não se pode esperar que seja um país perfeito. Agora, se comparado com regimes capitalistas como o nosso, eles têm privilegiado a questão social, o que é muito importante. E é uma pequena ilha, que só não está melhor por conta de décadas de bloqueio econômico dos Estados Unidos. Acho que agrande luta dos cubanos agora com a provável morte do Fidel é garantir essas conquistas.

Você fez charges sobre a ocupação militar no Haiti. Como vê a atuação do Brasil como líder das tropas da Onu lá?
Eu acho que realmente se o Brasil estivesse interessado em ajudar o Haiti ele não teria mandado tropas, ele teria mandado médicos, bombeiros, técnicos para reconstruir o país. O que se verificou é que o Haiti, particularmente a área de Porto Príncipe, as favelas do Haiti como Cité Soleil, têm servido de laboratório para treinamento de tropas pra guerrilha urbana, pra combate de favelas. É muito lamentável que essa missão do Brasil, dita humanitária, tenha servido na verdade como um campo de provas das forças armadas aqui no Brasil para se treinar combate na área urbana e com esse conhecimento ser aplicado nas favelas do Rio de Janeiro e provavelmente do Brasil. É muito lamentável que isso aconteça, não é mais segredo, isso já foi divulgado amplamente pela imprensa.

Julio Cortázar, escritor argentino, escreveu: “Enquanto a política não assegure a libertação cultural de Nossa América, a cultura deverá abrir o caminho para a libertação política”. Qual a importância da arte pra mudança política? Qual o papel da arte e do artista para esse processo?
Essa afirmação é brilhante. A arte tem o poder de chegar ao coração e a mente com muito mais força e verdade que proposições políticas. Agente vive numa sociedade eminentemente imagética, então através da arte se consegue atingir o íntimo das pessoas com mais facilidade, fala-se de maneira mais objetiva. Creio que a manifestação artística consegue condensar todo um cabedal de idéias, todo um ideário político e transformá-lo numa única idéia mais simples de assimilar. A arte tem um poder muito grande de vencer as barreiras, uma charge tem uma capacidade de comunicar uma idéia para povos de línguas, culturas e religiões diferentes. Acredito muito na arte como meio de promover a transformação.#

Fonte: Soy loco por ti, América Latina

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.