Da minha janela, o mundo se faz imenso, sem fim, numa justaposição de construções que se erguem a perder de vista. Da minha janela, aviões passando lá em cima, deixando seu rastro de som, árvores estáticas pelo ar parado, céu róseo de poluição. São Paulo (não) dorme, lá fora. A metrópole está isolada de mim, pelo vidro, mas tão presente no enquadramento da janela, quase palpável. Lembrando o diálogo inicial de Crash – No Limite (2004 Dir.: Paul Haggis), sempre estamos atrás do vidro na cidade, sempre isolados de alguma maneira. De fato, cada ser humano transita em seu universo paralelo. O vidro, a grade, os muros, as separações, uma infinidade de artifícios gerados daquilo que se garantiu como individual, privado.
É interessante que a individualidade na modernidade, tal qual a conhecemos, teve suas raízes ainda no Renascimento e só se permitia pelo paradoxo de que era condição básica para tornar todos iguais, equiparados, equivalentes e detentores de direitos universais. A arte, o ofício, as habilidades de um indivíduo o diferenciavam, mais ou menos, variando os códigos de valores de uma determinada sociedade. Mas à medida em que o dinheiro foi ganhando força, envolvido no contexto do Mercantilismo e sua forma evoluída, o Capitalismo, tornou-se meio de propiciar o status necessário para que um sujeito pudesse diferenciar-se do todo. Iniciou-se uma desservida transformação no que caracteriza o indivíduo, o ser único e singular que cada um é. Com a Revolução Industrial e o fenômeno da metropolização da vida, em meados do século 19, o dinheiro ganhou o título de “Deus da modernidade”. Não à toa, auto proclamam-se a nata aqueles que possuem mais dinheiro. É a parte mais rica do leite, aquela que flutua acima.
Da minha janela vejo um recorte de São Paulo, apenas um pequeno recorte, pois seu todo é inconcebível. De nenhum ponto o olhar se dará por satisfeito, haverá sempre um limite de alcance estabelecido, um quadro. São campos de cimento a perderem-se de vista, onde o asfalto, essa maravilha da vaidade humana, se transforma em rios de barcas que deslizam sobre rodas, o círculo, essa forma perfeita e tão instintiva. O homem não inventou a roda, deparou-se com ela por acaso, à medida em que naturalmente foi ganhando consciência das coisas ao seu redor. A modernidade e essa tão admissível pós-modernidade, super modernidade, hiper-mega-ultra-modernidade, são resultado de todo o esforço da humanidade, levado à exaustão, de entender o mundo ao seu redor, de dar-lhe um significado, de tirar-lhe o máximo proveito enquanto experiência única, até que se prove o contrário. Estamos a todo momento inventando métodos, planejando, projetando coisas para facilitar as nossas atividades, otimizar nossas ações a fim de obter o menor esforço possível, como um tal Déscartes perceberia. Estamos? Não estamos? Estamos ou estão, depende de sua condição social. No momento em que substituímos os valores humanos, pelos números, pelos cifrões – e isso atinge seu auge em nossos dias – assinamos um tratado para a dissolução do que se havia construído e reconstruído há tanto tempo: o caráter crítico, individual.
O dinheiro como deus da nossa época, é um facilitador de tudo, mas ao mesmo tempo, um fator altamente alienante. Posso soar radical demais quando me refiro diretamente ao dinheiro e, não aos meios em que se veiculam suas mensagens. Porém, não estou, neste momento, com a tevê ligada e da minha janela se estende São Paulo, essa cidade de extremos que convivem caótica e harmonicamente na madrugada. Não é culpa apenas dos subprodutos ideológicos que surgem a partir do dinheiro como viés de diferenciação do indivíduo. É claro que somos números de estatísticas e que o caráter econômico finalmente pode ser dado como efetivamente instalado e bem sucedido na lógica da nossa sociedade (população?) global. Mas se por um momento eu apenas observar, aqui da minha janela, nem preciso ir muito longe nas teorias mercadológicas, na crítica da publicidade exaustiva, e no aliciamento das crianças como peças desse sistema já pré formatado, como bons consumidores que já nascem. Basta olhar São Paulo e posso ver o convívio-conflito, essa coisa urbana que não consegue se afirmar exata, esse progresso constante e exaustivo, essas máquinas que cavucam o chão, esses caminhões e ônibus levando e trazendo gente e produtos, coisa só, peças desse sistema. Quando vendemos nossa alma ao dinheiro, equiparamo-nos a peças que fazem essas engrenagens girarem.
Da minha janela vejo um mar de construções a perde-se de vista, um amontoado de cavernas, encaixadas como blocos, uns em cima dos outros, o lugar de reclusão voluntária de cada um, desde os tempos mais primitivos. Basta olhar e ver que as cavernas desses urbanídios diferenciam-se em muitos aspectos, porque seus donos possuem menos ou mais dinheiro. E alguns vivem pelas ruas, sem ao menos uma caverna por direito universal, por não participar dos jogos burocráticos para sua aquisição, ou até mesmo a sorte de uma herança, um gene privilegiado talvez. O caráter progressista, emergido das profundezas do positivismo, aliado ao fator econômico impregnado na nossa era, estabelecem o cenário do dinheiro como o único sentido da vida, tecnológica e burocrática desse homem pós-apocalipse, desse homem número, matéria prima dos mercados, das indústrias, potencial de produção, de lucro. Da minha janela, vejo São Paulo, maior centro financeiro do país, onde mais se concentra o grosso da moeda e constato que realmente o dinheiro diferencia as pessoas umas das outras, segmentam tribos, individualizam-nas. Lamento por saber que as paredes de ferro e cimento, que separam esses apartamentos, sejam levantadas por ambição e com tamanha vaidade.
Danilo Tobias