A Ética dos encontros descartáveis
Falar de amor e sexo no século XXI implica refletir sobre a “sociedade do espetáculo”
descrita pelo polêmico pensador francês Guy Debord. O autor analisa uma forma de estar
no mundo em que a vida real é, inexoravelmente, pobre e fragmentada – e as pessoas são
obrigadas a assistir e a consumir passivamente as imagens de tudo que lhes falta em sua
existência subjetiva.
Essa perspectiva me remete ao termo “ficar” – rótulo informal para os encontros efêmeros e
descartáveis, nos quais ver, ser visto e aparecer reduzem os casais a machos e fêmeas no
cio. Os pares são transitórios, os arranjos duram apenas algumas horas, talvez dias. Ou
minutos. É o tempo do desejo saciado.
A disposição para a entrega, para o “outro” e para o amor vive (ou sobrevive) sob o impacto
do exagero, da aceleração e da competitividade. A sexualidade é experimentada como mais
um produto de consumo, fica disponível num mercado de troca que não vai além da
dimensão ilusória.
REFLEXOS DA GLOBALIZAÇÃO
“Ficar” denuncia uma nova ordem das coisas e o inevitável entrelaçamento entre indivíduo e
mundo. Uma espécie de voyeurismo, que ao mesmo tempo exibe e excita, restringe o
potencial criativo dos verdadeiros encontros à mera satisfação carnal. “Ficar” torna-se o
absolutismo literal, comprometendo a fusão com os outros sentidos. Impede a elaboração
das fantasias indispensáveis à compreensão do que está por trás da banal conexão entre os
pares e do que poderia ser apreciado, sentido e vivido como metáfora para novos e mais
criativos estilos de relacionamento.
Não fosse pela aproximação anestesiada entre os pares, devido ao consumo abusivo de
álcool e drogas (ou a combinação de ambos), também eu não teria ressalvas a essa fonte de
aprendizado para a vida adulta. Mas não são muitos os efeitos positivos do “ficar”. Ao
contrário: gravidez indesejada, disseminação de DSTs e ausência de auto-reconhecimento
por meio do “outro” são conseqüências freqüentes – e às vezes desastrosas. Sem medo da
rejeição, os jovens perdem o sabor da frustração, já que bocas, curvas, seios, músculos e
genitais estão sempre disponíveis. Rejeitar, do latim rejectare, significa fazer eco, repercutir,
lançar para fora, rebater. E a falta dessa experiência inibe a capacidade de perceber que o
“outro” também tem liberdade para escolher.
No cenário distorcido e nas imagens erotizadas da mídia vendem-se falsas necessidades e
pseudodesejos inspirados por corpos exuberantes e figuras estereotipadas de homens e
mulheres esvaziados de sua interioridade, privados de individualidade e raízes. Nessa
exibição indiscriminada – que comercializa amor da mesma forma que produtos para
higiene íntima – a alteridade não conta: só importa o que é manifesto e visto. O afeto é
desvalorizado porque o que vale mesmo é o desempenho. Essa constatação nos desafia em
outdoors, na televisão, nas revistas e pode ser testemunhada nos consultórios.
Que homens e mulheres se constroem a partir desse espetáculo? Tentar uma compreensão
na mais pura tradição junguiana me leva a recorrer aos arquétipos do inconsciente coletivo
(prefigurações de toda experiência humana que se manifesta em imagens), contrapondo-os
às configurações modeladas pela cultura de massa (os estereótipos, ou seja, características
que se referem a um determinado padrão generalizado e pouco original). Se um está
diretamente relacionado à multiplicidade de cada ser e, portanto, acessível a partir do
cultivo de alma, o outro configura personagens fictícios e pasteurizados – modelos
contemporâneos calcados em comportamentos coletivos que determinam personalidade,
atitudes e modos de falar de muitos.
Estrutura-se assim um ego contaminado pela projeção dos diversos modelos da cultura de
massa: o vazio interior, preenchido por imagens estereotipadas, permeia a aproximação
mágica entre os pares. Significa dizer que, por trás dessa magia, escondem-se pessoas
quase sempre inconscientes do modo como se comportam em relação aos próprios
movimentos psíquicos, e essa inconsciência, além de distanciá-las de seus processos
internos, é amplamente permeável às influências dos apelos coletivos vindos de fora.
O “ficar”, então, se legitima. Homens e mulheres experimentam, por meio da projeção, aquilo
que não são e desenvolvem a fobia da entrega, do compromisso e da rejeição, autorizando a
ética do provisório – uma lógica que interpreta um conjunto de valores passageiros e tenta
estabelecer entre eles alguma ordem que os justifique. O não-envolvimento, efeito dessa
projeção, funciona como vacina que os imuniza contra prováveis desencontros, que
invariavelmente ocorrem quando as exigências de suas verdadeiras imagens anímicas
projetadas não são mais atendidas. Inconscientes da própria essência, muitos optam por
relacionamentos compulsivos e superficiais, que alternam a necessidade de amar e
abandonar. Em sua não-existência vazia, na qual um pode ser todas as coisas para o outro,
vivem como verdadeiros camaleões, que se defendem dos predadores assumindo as
características que o meio lhes impõe. E passam a reproduzir infinitamente tal
comportamento até que uma pálida e sutil inquietação interna os desarme para um
primeiro contato com suas demandas da alma.
Buscar na mitologia o pano de fundo que dá sentido às várias formas de estar no mundo é
premissa básica da psicologia arquetípica. Associar histórias pessoais a mitos revela muito
de nós, em várias etapas da vida. O mito de Ísis-Osíris, por exemplo, nos oferece
informações e possibilidades de reflexão a respeito do “ficar”. Quando Osíris foi assassinado
e desmembrado pelo irmão Seth, Ísis saiu à procura dos pedaços desse corpo amado,
esquartejado e disperso pelo Egito, juntando todas as partes, exceto o órgão sexual, que foi
substituído por um falo de ouro. Osíris renasceu reconstituído em Amenti – o mundo
subterrâneo análogo ao Hades grego, o lugar onde está a psique, a morada da alma. E com o
falo artesanalmente construído gerou Hórus – a possibilidade de germinar o novo
não-efêmero, que facilita a cada ser viver de forma inteira uma relação harmoniosa de amor
e cumplicidade.
UNIVERSO INCONSCIENTE
A Ísis é atribuído o “poder” do renascimento, que psicologicamente significa o
reconhecimento de que a possibilidade de discriminação no mundo visível está intimamente
relacionada ao contato com os mistérios do universo inconsciente. Esse mito fala de
mulheres que buscam nos encontros provisórios partes do Osíris despedaçado em cada
homem com quem se relacionam; e de homens acreditando que o grande mistério de sua
vida se restringe à potência do falo de ouro, por meio do qual são estabelecidas relações de
poder e submissão.
Quanto maior a anestesia provocada por imagens coletivas estereotipadas e superficiais,
menor a possibilidade do contato com o mundo interior e com a realidade multifacetada do
“outro”. Nos dois últimos versos do “Soneto da fidelidade”, Vinicius de Moraes propõe uma
saída criativa para o misterioso prazer dos verdadeiros encontros: “que não seja imortal,
posto que é chama, mas seja infinito enquanto dure”.
Fonte: Revista Mente Cérebro