Genocídio Armênio: as consequências de 99 anos de negação e esquecimento

Reconhecimento do massacre e atual limpeza étnica em Kessab são chave para entender esse povo tão peculiar

“Eu gostaria de ver qualquer força deste mundo destruir esta raça, esta pequena tribo de pessoas sem importância, cujas guerras foram todas lutadas e perdidas, cujas estruturas foram todas destruídas, cuja literatura não foi lida, a música não foi ouvida, e as preces já não são mais atendidas. Vá em frente, destrua a Armênia. Veja se consegue. Mande-os para o deserto sem pão ou água. Queimem suas casas e igrejas. Daí veja se eles não vão rir, cantar e rezar novamente! Quando dois armênios se encontrarem novamente em qualquer lugar neste mundo, veja se eles não vão criar uma nova Armênia”, escreveu em 1935 o autor norte-americano de origem armênia William Saroyan.

Sobre todas essas desgraças, o escritor se refere principalmente ao primeiro genocídio do século XX, praticado pelos turcos contra os armênios há exatamente 99 anos. Mas o que faz o extermínio desta “pequena tribo de pessoas sem importância” algo digno de se lembrar? Geralmente, o ato de recordação de um massacre vem da necessidade de honrar seus mortos e manter latentes os acontecimentos para que estes não se repitam. Contudo, esse não é o caso dos armênios.

Em primeiro lugar, porque não enterramos nossos mortos. Em outras palavras, não realizamos nosso funeral, pois essa cerimônia só se completaria se tivéssemos a plena certeza de que a humanidade e, principalmente, os turcos compareceriam a ela. No entanto, para isso, é preciso dar um passo a mais. É necessário deixar de lado as amarras que prendem 99 anos de negacionismo e reconhecer os crimes cometidos desde o dia 24 de abril de 1915.

Monte Ararat é um dos principais símbolos da cultura armênia, mas atualmente está localizado em território anexado pelos turcos

Monte Ararat é um dos principais símbolos da cultura armênia, mas atualmente está localizado em território anexado pelos turcos

A busca pelo reconhecimento do genocídio é a principal luta da comunidade armênia internacional, isto é, dos filhos, netos e bisnetos da diáspora que espalhou 800 mil armênios ao redor do mundo. Curiosamente ontem, o atual primeiro-ministro turco, Recep Erdogan, reconheceu a “desumanidade” da tragédia de 1915 – algo inédito para um chefe de Estado turco. A partir de uma linguagem mais conciliatória do que os antigos líderes na abordagem do tema, Erdogan também surpreendeu tendo em vista sua postura conservadora, exemplificada nas constantes investidas em restrições de liberdade de expressão, com o bloqueio de redes sociais no país.

Mas isso não é suficiente. Erdogan, em seu comunicado, não usou em nenhum momento a palavra “genocídio” e o desleixo não foi por acaso. Na verdade, a recusa do termo reflete-se no fato de que o genocídio se insere no grupo de crimes contra humanidade, que tem um tratamento muito mais severo do que assassinatos isolados, conforme tratados internacionais. Entende-se que houve uma tentativa de eliminação de um grupo a partir de exigências raciais e étnicas. A isto, soma-se o fato de que a negação da Turquia freia a sua entrada à União Europeia, pois pressupõe uma recusa em assumir respeito aos direitos humanos.

 Patrícia Dichtchekenian/ Opera Mundi
Cartaz com a frase “O livro como testemunha do genocídio”, no museu do Genocídio de Yerevan

Contudo, há outra questão em jogo: além da necessidade de enterrarmos – com dignidade – nossos mortos a partir do reconhecimento do massacre, é preciso também afastar com todas as forças o fantasma do genocídio e fazer com que ele não se repita.

Novamente, não é o caso dos armênios. Atualmente, a cidade síria de Kessab, na fronteira com a Turquia, tem sido palco de uma verdadeira limpeza étnica de armênios.

Com população predominantemente armênia há séculos, Kessab foi brutalmente atacada por militantes extremistas da Turquia ligados a Al-Qaeda no último 21 de março. Para fugir das investidas de cunho étnico e religioso (vale ressaltar que armênios são cristãos), a população local se concentrou em um refúgio em Latakia, a cerca de 50 quilômetros de lá.

Na medida em que o temor de um novo genocídio se aproxima, nos indagamos: será possível continuar a “criar” uma nova Armênia, tal como pressupunha Saroyan? A história diz que sim.

A complexa e triste trajetória

Para entender o contexto histórico do genocídio é preciso ter em mente que o massacre de armênios remonta a um período anterior. Entre os anos de 1894 e 1896, o sultão turco Abdul Hamid II iniciou o extermínio de 300 mil armênios que viviam na porção Ocidental do país, anexada pelos turcos durante o Império Otomano.

Contudo, em 1908, o cenário político turco sofreu profundas transformações: O Comitê da União e Progresso, liderado pelos Jovens Turcos, destronou o sultão, proclamando governo constitucional e igualdade dos direitos civis para todos os cidadãos otomanos. Essa mudança radical deu ao povo armênio uma nova esperança.

Fonte: Opera Mundi e Youtube

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