O que te irrita durante a Copa do Mundo?
Leonardo Sakamoto
Não me irrito com policial que desce o cacete em manifestante, sangra jornalista ou age com violência com quem não é “gente de bem”.
Nem com quem faz oposição a alguém ou a uma ideia pelo mero prazer de fazer.
Nem com quem acha que fazer política é xingar o outro, à esquerda ou à direita.
Nem com famílias que são obrigadas a morar ao relento ou em “casas” prestes a desabar.
Nem com comerciais de concessionárias de serviços públicos que fazem você acreditar que as altas tarifas e a péssima qualidade que oferecem são um favor para você.
Nem com o fato de uma mulher ganhar menos que um homem exercendo a mesma função, com a mesma competência, na mesma empresa.
Nem com violência sexual contra turistas estrangeiras ou brasileiras.
Nem com a pasteurização do cotidiano, nivelado pela novela das 21h.
Nem com o atropelamento de ciclistas e pedestres por conta da ignorância coletiva de uma cidade motorizada.
Nem com o surgimento imediato de centenas de sem-teto após desocupações patrocinadas pela especulação imobiliária.
Nem com ruralistas que tentam aprovar leis que promovem terra arrasada nas florestas do país.
Nem com quem prega que índio é tudo bêbado e indolente, feito os “primos” deles, os bolivianos, que vêm emporcalhar a cidade.
Nem com quem defende a justificativa de crimes passionais para atenuar um homicídio.
Nem com pretensos parlamentares patriotas que acham que estão defendendo a nação ao passar a régua sobre direitos dos trabalhadores, rifando a qualidade de vida das futuras gerações.
Nem com a Câmara dos Vereadores não ter aprovado ainda o Plano Diretor. Aliás, o que é Plano Diretor?
Nem com aquela gente fina que sobe o vidro do carro ao ver um negro pobre no cruzamento.
Nem com os elegantes que acham que simplesmente tocar em uma pessoa com HIV mata.
Nem com autointitulados representantes do divino que adorariam ver mulheres que abortaram ardendo, não no inferno, mas por aqui mesmo.
Nem com quem pensa que sonegar nada mais é do que fazer justiça fiscal com as próprias mãos.
Nem com homens da lei que fazem bico de jagunços e tocam o terror, adubando o chão da Amazônia e da periferia de São Paulo com sangue.
Nem com idiotas que espancam gays nas ruas porque não conseguem conviver com a diferença.
Nem com pais e mães que acham que trabalho infantil enobrece o caráter.
Nem com militares da reserva que ficam tomando chá da tarde com bolinhos de chuva, falando mal da democracia, saudosistas da tortura.
Nem com o trabalho escravo e quem diz que ele não existe por lucrar com ele.
Nem com filhinhos-de-papai que queimam índios, matam mendigos e estupram meninas por aí, pois sabem que ficam impunes.
Nem com aquele pessoal estranho que prefere ver uma pessoa urrando de dor em uma cama de hospital ou sedada de morfina 24/7 do que lhe conceder o direito de finalizar a própria vida.
Nem com empresários picaretas que, na frente das câmeras, dizem que vão mudar o mundo e, por trás delas, poluem, destroem, exploram, enganam.
Nem com administradores públicos que adotam políticas higienistas para expulsar os rotos e remendados das ruas das cidades.
Nem com aqueles que consideram uma aberração um casal do mesmo sexo adotar uma menininha linda.
Nem em quem bate em mulher porque acha que é homem.
O que me irrita, de verdade, e me tira do sério, é errar os resultados do bolão da firma, vuvuzela às 9h da manhã de domingo e não encontrar a maldita figurinha que completaria o álbum. Além do trânsito e dos impostos, é claro.
Fonte: Blog do Sakamoto